Prato de arribação

domingo, 30 de novembro de 2008


A Paraíba é um dos poucos estados brasileiros que não conheço. Na primeira oportunidade, quero viajar a João Pessoa, que é considerada uma das regiões metropolitanas mais arborizadas do mundo e tem umas praias maravilhosas, conforme testemunho de pessoas que visitaram o Estado.


Eu não conheço a fundo a gastronomia paraibana. A minha única referência da comida do Estado vem do interior de São Paulo, lá longe, da minha infância de novo. Havia um doceiro, conhecido por "Paraibano", que fazia os melhores doces da minha cidade.

Uma de suas filhas é herdeira direta dessa vocação e fornece alguns dos melhores bolos - de casamento, batizado, aniversário - na cidade. A outra filha do "Paraibano" era uma tia minha que cozinhava que era um esplendor.


Mas, e que me corrijam os da terra se eu estiver muito equivocado, a Paraíba tem, sim, pratos típicos. Um deles é o Rubacão, que nada mais é do que o Baião-de-Dois. Mas, no momento em que se tem até um nome específico para o prato, não vejo porque não creditá-lo à cozinha típica da Paraíba. Na verdade, se diz que o Rubacão é uma espécie de Baião-de-Dois ao qual se adiciona feijão-de-corda (ou feijão-verde) e feijão branco (ou mulatinho). Aliás, encontrei, na pesquisa, uma referência a "Bede". Alguém sabe o que é?

O fato é que o Baião-de-Dois (que merece post próprio) varia conforme a cidade e a tradição de cada lugar. E isso me encanta tanto no Brasil quanto fora daqui. O Rubacão, além dos feijões mencionados, é composto pelo charque (ou carne-de-sol), toucinho, queijo-de-coalho, arroz-da-terra, manteiga de garrafa, queijo-de-manteiga, nata fresca, creme de leite, tomate, pimentão verde, coentro, pimenta-do-reino e cominho.


O Rubacão pode ser encontrado com os nomes de Arribação, Arribaçã ou Arrubação. Nesse caso, troca-se a carne-de-sol ou charque pela carne da arribaçã (pomba-do-sertão), ou avoantes (Zenaida auriculata), que são pássaros de pequeno porte que, infelizmente, estão em processo de extinção. Portanto, a caça da arribaçã é proibida pelo Ibama. A explicação para o nome Rubacão deriva, portanto, do fato de se usar essa ave ao invés da carne bovina.

Como eu escrevi anteriormente, o Rubacão (ou Baião-de-Dois) aceita várias combinações e, fácil, fácil, a substituição de ingredientes: o próprio uso de carne de arribaçã é explicado pela ausência da carne bovina - na maior parte das vezes, por motivos financeiros. Mas, há outras substituições que enriquecem o prato em diferentes regiões do Brasil: no cerrado, por exemplo, usa-se o pequi para compor o prato. Em Minas Gerais, troca-se o queijo coalho pelo queijo de Minas. Usa-se, em outros lugares, o pimentão ao invés da cebola e a carne-de-sol pode se transformar, de repente, de ingrediente em guarnição do Rubacão e vir acompanhada de paçoca (de carne) e pirão.

Sagu

sábado, 29 de novembro de 2008


Quando criança, na minha casa sempre havia sagu. Era feito de sagu, como o conhecemos no Brasil, com licor de jabuticaba. Depois, não sei o que aconteceu, mas, o sagu perdeu o posto de sobremesa. Saiu de moda. Sei lá!


O fato é que faz alguns anos que não experimento a delicadeza do sagu e, de repente, me deu uma vontade imensa de comer sagu.


No Brasil, o sagu é feito de fécula de mandioca, obtida a partir da moagem da planta para o fabrico de farinha. A fécula (como a da aveia) é o pó mais fino que se extrai da mandioca.


A sobremesa a que me referi é mais comum no Sul e Sudeste do Brasil e pode ser feita com vinho (ao invés de licor de jabuticaba), leite e suco de laranja. Pessoalmente, não conheço as variáveis de leite e de laranja. Vou experimentar.


Mas, a minha surpresa foi saber que há uma palmeira, o saguzeiro (Metroxylon sagu) que gera, efetivamente, o sagu. O saguzeiro é uma palmeira do Oriente e o sagu é extraído também a partir da fécula dessa palmeira, a partir do amido da planta, e é usado em larga escala como alimento básico na região.


Há também o sagu de tapioca, feito a partir da raiz da mandioca. A despeito da semelhança do sagu de fécula, o sabor difere quando um e outro são aplicados em receitas.

Radioativa

sexta-feira, 28 de novembro de 2008


O que as torres de celular e as castanhas-do-pará têm em comum? Te dou uma castanha se você acertar. Ambas emitem radioatividade. As torres de celular porque emitem ondas de rádio e as castanhas porque contêm rádio. E em grande quantidade: chegam a ter mil vezes mais rádio do que outras plantas. E a explicação está no intrincado sistema de raízes da castanheira-do-pará, extremamente extenso.


A castanha-do-pará ou castanha-do-brasil é a semente da castanheira-do-pará (Bertholletia excelsa), que é uma árvore nativa da Floresta Amazônica. É a única espécie do gênero. Está presente no Brasil, Guianas, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia, em toda a área amazônica.


A população do Amazonas consome bastante a castanha ao natural, torrada, em forma de farinhas, doces e sorvetes. A árvore chega a medir 45 metros de altura, vive em média 500 anos e pode chegar a 1 mil anos. A castanheira-do-pará produz castanhas quase que exclusivamente em matas virgens. Nas plantações comerciais, verifica-se uma produtividade baixa e, portanto, inviável economicamente.


O nome da castanha-do-pará em inglês é "Brazil nut". Porém, o maior exportador de castanhas-do-pará é a Bolívia, e não o Brasil. O nome da castanha vem do Estado do Pará. No Acre, são chamadas de castanhas-do-acre. Questão de princípios! Pode ser chamada também de juvia e de sapucaia, que são denominações indígenas.


A castanha-do-pará tem um gosto terroso e a presença de gordura saturada está entre as mais altas entre todas as castanhas e nozes, inclusive superior ao encontrado na macadâmia. Por conta disso e do gosto forte, a castanha-do-pará substitui a macadâmia e até mesmo o coco em receitas.


Com a castanha, é possível fazer tortas, biscoitos, bolos, arroz com castanha, saladas, panquecas, docinhos e mais uma infinidade de outros usos. Uma das formas mais gostosas de se apreciar a castanha-do-pará é comê-la crua. Vale por, pelo menos, uma dessas execráveis barrinhas de cereais disponíveis por aí.

Manga que te faz bem!

quinta-feira, 27 de novembro de 2008


A manga é uma das frutas das quais eu mais gosto. Adoro me lambuzar de manga, de sentir escorrer o suco, de ficar com fiapos irritantes entre os dentes. Não acredito em mangas que não têm fiapos! Pronto, está dito!


Ou tem fiapo ou não é manga. Esses cruzamentos genéticos que tendem a deixar manga ou qualquer outro tipo de alimento mais "confortável" não têm nada a ver. Quer coisa mais saborosa que apanhar uma manga do pé e ficar com um bigode amarelo de tanto se esbaldar com mangas? Ora, se você quer chupar manga e se portar como um convidado da rainha Elizabeth, por favor, vá catar coquinhos na Polinésia Francesa!


A manga é a fruta da mangueira (Mangifera L). Não, uma mangueira não 'dá' vacas, e sim mangas. A espécie mais popular é a Mangifera indica. O nome 'manga' vem da palavra malayalam (ou malabar) manga. Olha que original! A manga foi popularizada na Europa pelos portugueses, que a trouxeram de Kerala (sul da Índia), onde a trocaram por temperos.


As mangas são usadas na alimentação das mais diversas maneiras, mas, o consumo mais frequente é da fruta ao natural. A manga é antiga: há registros de fósseis de mangas de 25 milhões a 30 milhões de anos.


A fruta é uma das mais consumidas em todo o mundo.


Pode-se definir a manga como uma fruta soberana: é considerada a rainha das frutas tropicais, pela suculência e sabor; a manga ao natural pode ser degustada de várias formas, com prazer mesmo, sensual como somente pode ser uma fruta dessas (use a sua imaginação).


É ótima para fazer sucos, sobremesas (mousse de manga, pudim de manga, doce de manga), em saladas (crua) e como molho (já experimentou Penne ao Molho de Manga?). Há entre 550 e 1 mil variedades existentes de manga em todo o mundo. No Brasil, as mais cultivadas são: Alphonso, Bourbon, Carlota, Coração de Boi, Espada, Golden Nuggets, Haden, Keitt, Kent, Rosa, Rubi, Sebsation e Tommy Akins. São Paulo e Minas Gerais são os maiores produtores, com 50% da área plantada e 25% do da produção nacional. Mas, a manga é popular também na Bahia, Pernambuco, Piauí e Ceará.


E foi pela Bahia que a manga entrou no Brasil. Em 1700, o Estado recebeu, pelos portugueses, as primeiras mudas de mangueira. Eram mudas indianas. Sempre que me lembro de manga, me recordo dos versos da música de Alceu Valença: "da manga-rosa quero o gosto e o sumo ..." Dá vontade só de pensar!!! É carnal ou não?

Coração magoado

quarta-feira, 26 de novembro de 2008


No Nordeste, o tubérculo é chamado de "coração magoado". Gosto do nome, mas, não o compreendo completamente: a batata-doce, assada em brasa, é um dos alimentos mais gostosos para se comer numa manhã de inverno no campo.


Afirmo isso com a convicção de ter feito, eu mesmo, a brasa e a batata-doce assada em brasa. Com café, então, é irresistível. Então, como pode ser "coração magoado"? Talvez seja pela dolçura. Talvez. A batata-doce (Ipomoea batata) é da ordem de hortaliças de raízes como a própria batata (inglesa e demais espécies), do tomate e das pimentas.


Há diversas variedades - de mesa ou de mercado - e podem ser amarelas, brancas ou roxas. Também são classificadas conforme o tamanho, a cor interna, o dulçor e a cor das folhas e das flores. No Brasil, é a sexta hortaliça mais cultivada, ainda que haja um declínio da produção no País.


Originária da Cordilheira dos Andes, a batata-doce é bastante cultivada nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A produção, em grande parte, destina-se ao consumo doméstico, de subsistência. E, primordialmente, é consumida por famílias rurais na primeira refeição do dia, ou seja, no café da manhã, assim como eu citei no início do post.


Em geral, a batata-doce é consumida cozida ou assada, mas, pode ser batida com leite, em forma de vitamina. O Brasil produz quatro tipos de batata-doce, classificados conforme a cor da polpa: batata-branca (chamada também de angola ou terra-nova), que tem polpa seca e não muito doce; batata-amarela, mais doce do que a batata-branca; batata-roxa, com casca e polpa roxa e sabor e aroma agradáveis, ideal para fazer doce; e batata-doce-avermelhada. Essa última é chamada, no Nordeste, de "coração magoado". Tem casca parda e polpa amarela com veios roxos ou avermelhados, o que lhe dá um aspecto de um coração humano cansado.


Eu preferia que o "magoado" do nome fosse de uma origem sentimental, claro. Mas, trata-se mais da condição física do coração. Nesse caso, o coração, digo, a batata-doce, não está nas melhores condições. Quer dizer, para consumo sim. Não para o funcionamento, se coração fosse. Ai que confusão!


Falei no começo da batata-doce assada em brasa. Mas, acho que gosto mais ainda do doce de batata-doce. Doce esse que, como já citei no blog, me remete à minha infância. Industrialmente, o doce de batata-doce pode ser colorido (vermelho, marrom). O gosto é o mesmo. Além do marrom-glacê, fantástico, do qual eu nunca enjoei. E olha a ironia, tipicamente brasileira: o marron-glacé original é um doce francês (também chamado de castanha glaçada), feito de castanha cozida mergulhada em calda de açúcar. Como é uma produção cara e refinada, rapidamente, no Brasil, nos apropriamos da denominação marron-glacê para o doce de batata-doce. E o sabor entre os dois - o francês e o brasileiro - é até mesmo semelhante. 

Morangona

terça-feira, 25 de novembro de 2008


A moranga, ou abóbora-moranga (Cucurbita máxima, Duschene, Dicotyledonae ou Cucurbitaceae), é original da América do Sul, das civilizações pré-colombianas.


Há algumas variações regionais brasileiras como a moranga exportação (de casca alaranjada e polpa amarela), moranga Coroa IAC (casca cinzenta e polpa amarela) e híbridas como a Tetsukabuto (da Bahia), Lavras I e Lavras II.


Da moranga, se aproveita tudo: da polpa são feitos doces, sopas, refogados, suflês, nhoques, pão, bolos, purês, sorvetes. E vai bem com cozidos, feijoada e assados. Crua, pode ser ralada e salpicada em saladas leves. Essa hortaliça multifacetada deveria se chamar Morangona, tal a diversidade de uso.


Os brotos podem ser usados na gastronomia salteados, para compor algum prato. As folhas, também salteadas, podem ser adicionadas a sopas e caldos. E as flores podem ser feitas à milanesa, salteadas para rechear omeletes e, claro, para decorar pratos.

As próprias sementes podem ser usadas em sopas e purês e também podem ser salteadas em manteiga como aperitivo (como o amendoim).


Para mim, o melhor papel da moranga é o de servir de base para o prato Camarão na Moranga. Conservo até hoje a memória gustativa do Camarão na Moranga que tive o prazer de comer no restaurante República dos Camarões, em Maceió, capital das Alagoas. Divino, para dizer o mínimo. Os camarões eram gigantescos, a moranga, perfeita, e as guarnições eram típicas. Além, é claro, da companhia. Como isso aconteceu há muito tempo, creio que está na hora de eu voltar a Maceió para repetir a dose.

Codorna

segunda-feira, 24 de novembro de 2008


A codorna-do-campo (Nothura maculosa), também conhecida como codorna-comum, perdizinho e codorna-amarela foi, durante muito tempo, a nossa ave de caça por excelência.


Mas, é bom lembrar que a caça de qualquer espécie de animal silvestre é proibida no Brasil desde 1967. Mesmo assim, me lembro vagamente que, no sítio do meu avô, onde havia muitas codornas-comuns, iam uns amigos portugueses (ou seriam espanhóis, talvez), com cachorros perdigueiros para caçar a codorna.


Minha mãe deve saber dessas histórias melhor do que eu. Tudo o que lembro é que aqueles caçadores levavam cachorros e espingardas e saíam para o mato para caçar as pequenas aves. Depois, voltavam com uma série de codornas dependuradas.

A codorna-comum existe no Brasil há mais de 20 mil anos e sempre fez parte da alimentação dos índios. A ave é confundida com a codorniz européia, mas, são espécies completamente distintas. A nossa cordona é da família dos tinamídeos (da qual fazem parte o macuco, a azulona, o inambu e a perdiz).


No Brasil, há apenas três raças de codorna: a codorna-comum ou perdizinho (a Nothura maculosa), a codorna-mineira (Nothura minor) e a codorna-buraqueira (Nothura boraquira e Taoniscus nanus). Essas aves vivem entre o Rio Grande do Sul e a Bahia.


Os pratos mais atraentes são os de codorna assada. Mas, a ave também é servida frita, como um frango a passarinho. As aves de caça, em geral, vão muito bem com purês e risotos. E, claro, vinhos. No Brasil, há criação comercial de codorna-comum e não é difícil encontrar a ave em supermercados.


Agora, lá no interior, no sítio do meu avô, eu nunca mais vi codornas. Creio que os caçadores (portugueses ou espanhóis) foram responsáveis por dizimá-las, com suas espingardas de canos longos e cachorros perdigueiros que, durante muito tempo, fizeram parte do cenário da minha infância.

Fresco, branco e mole

domingo, 23 de novembro de 2008


Sim, temos queijo. Assim como o coalho, brasileiríssimo, o Queijo Minas Frescal é tipicamente verde-amarelo. Existe até mesmo uma legislação sobre o Frescal. É o Regulamento Técnico Mercosul de Identidade e Qualidade nº. 145/96, segundo o qual "entende-se por Queijo Minas Frescal o queijo fresco obtido por coagulação enzimática do leite com coalho e/ou outras enzimas coagulantes apropriadas, complementada ou não com ação de bactérias lácticas específicas."

OK, OK. Esse povo legislador dificulta tudo com essa linguagem científica e daqui a pouco teremos que ser todos cientistas-químicos para entender de cozinha. O que eu faço, logo eu que não gosto de química? E que sempre fui mal na matéria?


Mas, ao Frescal, pois, que há que se perder a ternura, mas, a frescura, jamais! As características mais marcantes desse fresco queijo mineiro são: massa crua, consistência mole, alta umidade, semi-gordo (tudo o que é bom engorda, não é?) e com grande variedade de sabores.

A mineirice do Queijo Frescal não significa, necessariamente, timidez. Longe disso, o Frescal é um dos queijos mais populares do Brasil. Segundo um estudo mais antigo (2004), o consumo de queijo no Brasil era, na sequência: Mussarela, Prato, Frescal, Ricota e Queijo de Minas.


O Frescal originou-se a partir do Queijo de Minas, na verdade. Que, por sua vez, nasceu a partir da técnica portuguesa de se fazer queijo, vinda da receita do queijo Serra da Estrela (feito com leite de ovelha, considerado o melhor queijo de Portugal). No século XVIII, a exploração de ouro nas Minas Gerais levou consigo os exploradores e a técnica artesanal para fazer queijo, o que gerou o Queijo Minas.


A variável entre o queijo Serra da Estrela e o queijo Minas está no coagulante: o Serra da Estrela era fabricado com o uso de extrato de flores e brotos de cardo, enquanto o queijo Minas usava coagulante desenvolvido a partir do estômago seco e salgado de bezerros e cabritos.


A partir de diversas evoluções, chegou-se ao Queijo Minas Frescal, que é feito a partir de leite de vaca ou de cabra. O uso do queijo pode ser o mais diverso possível, tanto quanto o são os demais queijos. Mas, tenho para mim que é quase impossível conceber o Frescal sem que forme o par romântico com a goiabada cascão. É impagável essa união, não é?

Depois do sereno

sábado, 22 de novembro de 2008


O charque é a carne vacum (bovina) - feito a partir de peças de primeira como o coxão-mole, o contra-filé (lombo), a alcatra e o lagarto (ou tatu) - que é salgada e deixada ao relento - ou sereno - para curtir, durante a noite. Em Santa Catarina, na região do planalto - cidades de Lages, Urupema e São Joaquim - e na serra - cidades de Santo Amaro da Imperatriz e Timbó - há uma variável do charque, específico dessas localidades, chamado de "frescal", que é exposta ao ar livre apenas durante a noite, no sereno.


Em geral, pela técnica do charqueamento, coloca-se sal na proporção de 3% do peso total da peça de carne. Na primeira fase, a carne descansa em recipiente próprio (de preferência, gamela) por 24 horas. Em segunda fase, a carne fica mais 48 horas na sombra - melhor no sereno, sem chuva. Esse método de conservação, antigo e primitivo, do tempo em que sequer se imaginava a existência de refrigeradores, é capaz de manter a carne boa para consumo em até 48 horas, quando a estação é de calor, e em até 72 horas, para as estações frias. Note que, se conservada em geladeira, a carne perde a suculência e a propriedade tenra.

No século XIX, o charque era o principal produto econômico do Rio Grande do Sul. Mas, antes do processo de charqueamento, a carne era praticamente desprezada nos campos gaúchos porque os criadores usavam apenas o couro.


Quem deu início à técnica do charque no Rio Grande do Sul foi o português José Pinto Martins, da Freguesia de Meixomil, do Conselho de Paços de Ferreira, Porto (na região Entre Douro e Minho). José migrou do Ceará para o Rio Grande, no Rio Grande do Sul, em 1777, em função da seca do Nordeste. No Ceará, era fabricante de carne-seca. O português percebeu que algumas cabeças de gado eram abatidas para o consumo humano de carne e de gordura e que outras eram mortas apenas para a extração do couro que, num processo antigo, eram estaqueados (abertos com estacas, processo usual no interior de São Paulo até há bem pouco tempo) e colocados ao sol para secar. De resto, tudo o mais se perdia dessas cabeças de gado. A partir daí, o português começou a charquear a carne, assim como fazia no Ceará.

O charque e a carne-seca são praticamente sinônimos. O que as difere é a quantidade de sal usada no processo de salga da carnes. Assim, usa-se a expressão carne-de-charque no Nordeste, por exemplo, e carne-seca é usada principalmente na região Sudeste.


A princípio, como muitos outros tipos de alimentos, o charque era usado principalmente para alimentar os escravos (e o bacalhau, à época, também). Praticamente, o Brasil era o único país produtor de charque. Havia variáveis do processo no Uruguai e na Argentina, mas, o Brasil dominava a maior parte da produção na região latina.

Assim como ocorreu com outras produções, a preparação do charque se adaptou e mudou. Atualmente, se faz charque de carnes mais nobres, como a vitela. As peças de vitela são cortadas em mantas e o uso do charque é bastante apreciado na elaboração de pratos como Arroz de Carreteiro, Roupa Velha (ou Charque Desfiado) e Charque Farroupilha, todos pratos típicos regionais gaúchos.


A diferença entre a carne-de-sol (Nordeste) e o charque é que a carne-de-sol é cortada, ligeiramente salgada e guardada em locais cobertos e ventilados (no Sul, são expostas à ação do tempo). No processo de preparo da carne-de-sol, o clima ideal é o bastante seco, condição perfeitamente atendida pelo clima semi-árido de algumas regiões do Nordeste. A carne-de-sol tem uma secagem bastante rápida e essa secagem forma uma casca protetora (como uma casca de ovo) que conserva o interior da peça de carne úmida e tenra.

Das três carnes desidratadas - charque, carne-seca e carne-de-sol - a carne-de-sol é a que cozinha com mais rapidez.

Para o processo de preparo da carne-seca, conhecida também como carne-de-vento, carne-do-sertão, carne-do-Ceará, carne-do-Sul ou jabá (do tupi yaba, que significa fugir, se esconder), a carne é esfregada com uma grande quantidade de sal e empilhada em lugares secos. Essas mantas de carne são constantemente mudadas de posição para facilitar a evaporação. Depois, são estendidas em varais, sob o sol, até que o processo de desidratação esteja completo.

Por fim, o charque (do quíchua xarqui; o povo quíchua eram indígenas dos Andes) é preparado quase que de forma similar à preparação da carne-seca. A diferença está na quantidade de sal usada e no tempo de exposição ao sol, que é superior ao tempo da carne-seca.


Há, ainda, alguns outros detalhes na preparação das carnes desidratadas. O sal usado para a carne-de-sol é mais fino do que o usado para a produção de charque. No Nordeste, a carne-de-sol pode ser bovina e caprina e, ao contrário do charque, não é exposta ao sol, a despeito do nome. A carne-de-sol era antes chamada de carne-de-vento (conservação em local coberto e bem ventilado) e é feita de cortes de toda a carcaça bovina. O charque é feito apenas de carne. 

Veja algumas diferenças (e semelhanças) de nomes entre o charque a carne-de-sol:

- Charque: carne-seca, carne-do-sertão, xergão, chalona, xarqui, jabá ou paçoca.
- Carne-de-sol: carne-de-sertão, carne serenada, carne-de-viagem, carne-mole, carne-do-vento, cacina e carne acacinado.

No Brasil inteiro se apreciam as receitas com as carnes desidratadas - seja o charque, a carne-seca ou a carne-de-sol. Na região Centro-Oeste, come-se a Carne-seca com Banana, em Minas Gerais, a Canjiquinha Mineira, na Bahia, a Dobradinha Baiana, em Pernambuco, o Escondidinho de Charque, além de pratos nacionais como a Feijoada e as farofas, as mais diversas.

Sob o céu de brigadeiro

sexta-feira, 21 de novembro de 2008


O Brigadeiro é um dos dois produtos brasileiros que tem Denominação de Origem Controlada (D.O.C.). O outro é o lanche Bauru. Abordei o tema D.O.C. no início deste blog. Segundo as normas estabelecidas pela D.O.C. do Brigadeiro, ao se fazer o doce, deve-se respeitar categoricamente as técnicas, medidas e ingredientes.


Abaixo, o passo-a-passo para a confecção do autêntico Brigadeiro brasileiro:

A receita determina que o Brigadeiro legítimo deve ser feito em território nacional. Os ingredientes são chocolate em pó, manteiga e leite condensado (há multinacionais que dominam o mercado; portanto, se você descobrir um leite condensado quase artesanal, me avise). Algumas pessoas usam, nas receitas caseiras, gema de ovo, achocolatados e margarina, ao invés de manteiga. Permita-me discordar: se você se propõe a fazer Brigadeiro autêntico, use, igualmente, ingredientes autênticos.


A cobertura do Brigadeiro é de chocolate granulado. O tamanho é extremamente importante: o Brigadeiro deve ter 3 cm de diâmetro (forma nº. 5) e pesar, em média, 25 gramas. O ideal é que se coma o Brigadeiro de uma só vez. Não é um doce para se comer aos bocadinhos, com requinte. Lembre-se: é doce brasileiro, e não concorre num festival de belos chocolates belgas.

De preferência, o Brigadeiro tem que ter uma consistência puxa-puxa e, simultaneamente, derreter no contato com a boca sem grudar nos dentes. É difícil, mas, com treino, consegue-se atingir a consistência ideal.


Quando servir o Brigadeiro, espere um pouco após o preparo e o sirva à temperatura ambiente. Também não vai exagerar e deixar derreter. E jamais coloque o Brigadeiro sob refrigeração. O chocolate tende a ficar duro e esbranquiçado quando conservado em geladeira.

Tente fazer o legítimo doce com D.O.C. e e você atingirá velocidade de cruzeiro num céu de Brigadeiro.

Bicho do pau

quinta-feira, 20 de novembro de 2008


Foi publicado no jornal Folha de S.Paulo desta quinta-feira, 20, um artigo assinado pelo chef Alex Atala (D.O.M. e Dalva & Dito) sobre a visita ao Pará e Amazônia na qual ele foi o anfitrião de dois dos chefs espanhóis mais famosos da atualidade - Ferran Adrià e Juan Mari Arzak. A íntegra do artigo está neste link. No artigo, Atala comenta, entre outras coisas, sobre a surpresa dos estrangeiros diante do turu.


O turu é um molusco que vive em árvores em estado de putrefação, ou podres, em locais como a Amazônia e a Ilha de Marajó. São como os caranguejos dos mangues de Pernambuco: vivem apenas em troncos apodrecidos e é preciso se enfiar na lama para apanhá-los. Outros peixes exóticos, como o tralhoto (ou quatrolho), podem ser encontrados no mangue amazônico.

O molusco é apanhado diretamente do tronco: os ribeirinhos cortam os troncos podres e os turus saem para a superfície. Assemelham-se a macarrões do tipo spaguetti ou a minhocas de maior porte. Ou, se você não sentir nojo, parece-se mesmo é com uma lombriga branca e leitosa. Assim que a moradia do turu é devassada, o molusco morre.


São compridos, com até um metro e meio, e espessos até a circunferência de um polegar. Muitas vezes, o apanhador de turu carrega o tronco ao invés de "colher" os turus. Exatamente como Atala fez no jantar que serviu aos espanhóis no D.O.M.

Os turus podem ser comidos crus e, popularmente, acredita-se que o molusco é afrodisíaco, motivo pelo qual é um dos pratos preferidos dos moradores da Ilha de Marajó. Por conta da moradia, e talvez por essa outra função, o turu é conhecido também como "bicho do pau". Para se comer o turu, deve-se abrir o ventre do molusco para retirar o sistema digestivo, exatamente como se faz com os peixes, de forma geral. Então, basta temperar com sal e limão e consumi-lo como ostra, em processo de sucção. OK, OK, um chupão!


(Caldo de Turu)

E, a propósito, o sabor do turu é comparado à ostra, ao mexilhão e mesmo à polpa de coco verde. Na Ilha de Marajó, come-se, ainda, uma larva, o tapuru, que vive dentro do coquinho de tucumã e que deve ser frito. É uma herança indígena. Os índios sempre comeram as larvas que vivem em troncos de árvore. O turu pode ser consumido em caldo ou frigideira de turu, além de cru.

No jantar que ofereceu ao chefs espanhóis que participaram do evento Semana Mesa SP, Alex Atala pode se divertir com o espanto dos europeus diante do turu. Me ocorre que foram necessários alguns séculos - cinco, para ser mais específico - entre a descoberta do Brasil pelos europeus (portugueses) e a redescoberta de ingredientes da terra de novo pelos europeus (espanhóis). Ingredientes esses que fazem parte da dieta indígena de forma milenar.

P.S. Já que toquei no assunto e estamos próximos daquela data comercial bastante popular, vou dizer de uma vez. Se você tem alguma dúvida sobre qual presente me dar neste final de ano, seus problemas acabaram: o nome é "Escoffianas Brasileiras" novo livro do Alex Atala, que eu quero porque quero. Pronto, falei!