A falta que a comida caipira faz ao caipira

sábado, 14 de novembro de 2009

Oiiiiii!!!! O blog não morreu, o blog está vivo, salve o blog! Me desculpem todos que o acessam esporadicamente ou mais frequentemente. A ausência completa (não absoluta, por eventualmente responder aos comentários) deve-se, sobretudo, ao trabalho.

O fato de ter dois blogs - se você ainda não conhece, visite o Por uma Second Life menos ordinária, este sim atualizado diariamente - fez com que eu fosse algo negligente com este querido espaço que é o Manifesto Terreiroir. E o fato de ser um social networks addict (tenho perfis em quase todas as redes sociais que você possa imaginar) me toma um tempo demasiado.



Mas acho que a explicação é mais complicada do que apenas a singela falta de tempo: concluí a faculdade de gastronomia no ano passado (e já até colei grau). Como, de lá para cá, a cozinha tornou-se apenas doméstica, sinto que meu ânimo arrefeceu e, junto com ele, as chamas que alimentavam o fogareiro deste blog.

Resolvi postar, portanto, algo sobre a comida caipira do Estado de São Paulo. Meu codinome 'Redneck' significa, em português, 'caipira'. Os rednecks norte-americanos são uns sujeitos toscos, dados a atitudes bastante bregas. Este Redneck que vos escreve não é exatamente tosco. Mas me apropriei do conceito de redneck para aludir à caipirice. Que não é brega. É rica no sentido de ter um histórico cultural, de pertencer à terra e, portanto, a um determinado terreiroir que me é implícito.

Ontem fui jantar num restaurante moderninho. A cozinha faz uma mistura entre elementos brasileiros e tailandeses e se pretende contemporânea. Ao pedir meu prato, me ocorreu que aquelas delicadas tirinhas de frango envolvidas em molho espesso de curry e acompanhadas de vagem na manteiga não são propriamente mais saborosas que o velho e bom frango de panela que a minha mãe e, antes dela, minha avó, fazem e muito bem.

Sempre gostei de carne de frango. Acho que é a minha preferida - antes da carne bovina e de peixe, por exemplo. A comida caipira (poderia cunhar o conceito de 'redneck food' para isso) é, tipicamente, um conjunto de pratos típicos do interior de São Paulo (e interior é longe do mar e do entorno urbano da Grande São Paulo).



Era feita no fogo-de-chão, na trempe (um artefato similar às grades dos fogões a gás). A trempe antiga era ainda mais rude: podia ser um arco de ferro apoiado sobre um tripé no qual se coloca a panela ao fogo ou, ainda, três pedras, dispostas em triângulo, sobre as quais se assentava a panela ou caldeirão ao fogo (veja a foto acima). É estranho mas, para fazer a relação com a imagem, imagine os westerns norte-americanos: os cowboys do Velho Oeste dos EUA usavam esses fogões primitivos para fazer o café e as refeições. Nem tão estranho: isso remete de novo ao redneck no sentido de caipira. Tal qual este blogueiro e vaqueiros que conduziram suas tropas por este sertão que era o Estado de São Paulo.

Justamente os tropeiros foram os homens (olha aí há quanto tempo os homens estão na cozinha!) que disseminaram a gastronomia caipira de São Paulo para o Brasil. Os pratos estão nas nossas mesas até hoje: leitão à pururuca, cuscuz de legumes, pamonha, arroz tropeiro, bolinho caipira, vaca atolada, fango caipira (hummmm... deu até água na boca), furrundum (doce de cidra ou mamão verde ralado com rapadura derretida), farofa de linguiça, angu, virado à paulista, farofa de içá, doce de bananinha e outros, muitos outros. Poderia desfiar um rosário de pratos e ainda não terminaria a reza.

De forma que senti falta de pratos de casa, caseiros, com gosto de fogão a lenha. E sem gosto de fumaça. Mas o frango a borbulhar em panelas de ferro, com o caldo avermelhado pelo urucum e o cheiro verde - e, de vez em quando, se fosse época, milho verde - é impagável. Salivo gratuitamente apenas com a descrição. Esse caipira aqui foi tomado pelo falta dessa comida caipira.

É tempo de reconciliação

terça-feira, 4 de agosto de 2009


De repente, instado por uma urgente necessidade básica de cuidar do corpo, que do espírito já não sei se posso fazê-lo, sou, sem mais nem porque, jogado aos leões feito Daniel. Mas, sendo eu próprio um leão, o fato, por si só, não me aflige: leoninamente, balanço a juba e sigo impávido.

Esses leões, de fato, estão mais para quimeras. E não me julgue muito rigorosamente pois que tento me reconciliar com todo um universo de frutas, verduras e legumes (as minhas quimeras, pois), da forma mais responsável possível, e, um pouquinho que seja, de maneira satisfatória.


Eu sei, eu sei! Da forma como coloco, parece que estou a ir ao cadafalso. Não é de todo falso esse sentimento. Mas, eu, gastrônomo, aliado do ingrediente, sou bastante refratário ao consumo das amplas famílias, linhagens, ramificações e folhas, principalmente folhas, dos legumes, verduras e frutas.

Encostado em paredes semelhantes a paredões de fuzilamento e acuado por invisíveis fuzis, me rendo e peço clemência. Mas não de todo. Sou bastante dissimulado quando a estratégia o pede e resolvi fazer dessa nova etapa dietética que me é imposta uma potencial aliança com a verdejante flora comestível. Resolvi sondar o adversário (claro, na concepção do meu paladar) e me unir às suas próprias tropas, tão verdes quanto os olivais uniformes de exércitos.


O fato 1 é que gosto de carne, massas e doces. Em profusão. Verdadeiros oceanos desses alimentos. O fato 2 é que me estão praticamente proibidos. E, assim interditados, me parecem ainda mais excitantes. Ai!

Quando confrontado com ingredientes saudáveis (e o são, admito), a primeira coisa que me vem à cabeça, de forma estranha, é o chuchu. Não se ria. Não sei porque. O chuchu (Sechium edule) é uma hortaliça-fruto, também chamado de machucho e caiota (nos Açores). Para mim, o chuchu é insosso. Não faz minha saliva porejar, perigosa. Não tem gosto. Nada. Vejo apenas a carne macia do chuchu, cozida em água e sal (pouco) e só. Se não fosse a ácida companhia do limão, o chuchu, oh!, seria apenas chuchu.

Chuqrinho que só, de tão sem gosto. Mas, prometi tempos de paz entre eu mesmo e os caros vegetais, legumes e frutas que deverão trabalhar em equipe para me recompor. E, colocado assim, tenho que ter um relacionamento, no mínimo, de respeito com todos esses alimentos.


Não sei porque ocorre essa desintimidade entre o chuchu e eu. Nunca brigamos, de fato. Eu é que, emburrado, me faço de rogado. Talvez haja um certo desdém de minha parte porque o fruto nem da terra é. É vizinho, mas vizinho não é de casa, pois não? Acredita-se que o chuchu vem da América Central, principalmente da Costa Rica e Panamá. Não sei como chegou ao Brasil mas está aqui, impávido a me fitar de suas trepadeiras folhagens. Quando o manto das Américas levantaram nações outras, parece que o chuchu trepava em ramagens fortes no Caribe.

Os astecas, povo desconhecido e misterioso, o destacavam entre as hortaliças e se o faziam, não há de ser eu, uma mixórdia de raças em mim mesmo, que devo desfazê-lo. É uma hortaliça generosa e, suave, pode ser consumida à vontade, o ano todo. É rica em fibras (das quais tenho grande necessidade nesse momento) e pobre em calorias (as quais posso desprezar em toneladas).


Na Ilha da Madeira, leva um nome mais atraente: pepinela ou pimpinela e é ingrediente da gastronomia local. Come-se, na Madeira, chuchu com feijão, batatas e milho para acompanhar, sobretudo, caldeiradas de peixe.

A família ramifica-se em outras conhecidas hortaliças, às quais também terei que prestar continência e demonstrar um pouco de apreço: pepino, abóbora, melão e melancia. Para minha surpresa - e por isso a importância de se conhecer o inimigo, ops!, o colega - o chuchu tem uma ampla variedade de forma, tamanho e cor. Pode ser arredondado ou em formato de pêra. A casca pode ser lisa ou com espinhos e a cor vai do branco ao verde escuro.

Não se consome o chuchu in natura. Deve ser cozido ou refogado e transformado em sopas, cremes, suflês, bolos ou saladas. Outro dado novo para mim: pode-se consumir as folhas, brotos e raízes do chuchu.


Ainda não estou de todo apaixonado por esse fruto-hortaliça. Mas, o fato de eu escrever sobre o chuchu mostra (espero) uma tentativa de nos darmos bem. De limpar entre nós dois quaisquer resquícios de incivilidade. Eu preciso de chuchu. O chuchu não depende de mim. Simples assim.

Estou aqui, cá com meus botões, a imaginar que posso aguentar essas novas trincheiras. Chuchu com camarão é bom, afinal. OK! Sei que não convenci de todo, mas hei de me unir às hostes verdes do alimento da terra. Ou verde ficarei eu de outras coisas tão estranhas que poderão ser creditadas à Marte, caso o sejam, os marcianos, efetivamente verdes. Por enquanto, apenas tremo feito vara verde enquanto não ocorre a aproximação desse vastíssimo contingente verde que me livrará de todos os males. Amém!

Em defesa do reinado do marajá brasileiro

terça-feira, 7 de julho de 2009


Gasta pelo uso político fundado na era Collor, a palavra 'marajá' nos causa, a nós brasileiros, de imediato, repulsa. O termo foi apropriado nos anos 90 no Brasil para definir a casta de políticos e respectivos apadrinhados mantidos em empregos-fantasmas. Assim, esses 'marajás' brasileiros eram funcionários públicos regiamente pagos com altos salários e, na prática, não exerciam função alguma.

O Brasil, ainda que não tenha um sistema de castas aos moldes da Índia, incorporou muito bem ao menos esse escalão, os dos maha-rajá, que tinham, sim, pequenos feudos sobre os quais agiam conforme os correspondentes marajás indianos: com mandos e desmandos e muito poder regado a dinheiro público. Houve, ao final do marajonato de Collor, uma verdadeira caça aos marajás brasileiros e, embora a limpeza tenha sido bastante eficiente, restam uns e outros à margem de Ganges tropicais imaginários, prontos para reassumir igualmente fantasiosos reinados. Há que se manter vigília permanente, portanto, para que esses reis não retomem cepos, tronos e coroas e venham a triunfar em desfiles tão flagrantes quanto elefantes em procissão na Ásia.

Por conta da má fama, a palavra 'marajá' é precedida, portanto, de preâmbulos como esse que acabei de descrever acima. Causa azia e ânsia mal contida nos estômagos um tanto quanto sensíveis das pessoas que viveram aquela era peculiar com predominância de entes estranhos ao paladar nacional como marajás, oriundos de tão distantes reinos que o eram os autênticos indianos.

Bem, essa preleção toda é para que fique registrado na memória que há, pelo menos, um marajá legítimo, de raiz brasileira, e que nada tem que ver com reinos, Índia e muito menos com comportamentos políticos que merecem fogueira em praça pública.


Marajá é o nome de um fruto do marajazeiro, uma palmeira nativa da Amazônia. O marajá (Pyrenoglyphis maruja) brasileiro tem o tamanho de uma azeitona e o formato de um côco, cujas cascas podem ser roxas ou pretas. A polpa é branca e pode tender também para o rosa, com leve sabor que transita entre o adocicado e o azedo.

Popularmente, a árvore marajazeiro é conhecida como palmeira-marajá e o produto principal do fruto é o licor de Marajá, assim, grafado em maiúscula para designar, de forma respeitosa, um fruto nativo das matas amazônicas, e mais especificamente encontrado nas extensões da floresta que chega ao Pará.

A palmeira é silvestre e desenvolve-se bem em terrenos alagados, às margens dos rios e igarapés da Amazônia. Tanto que é comum encontrar a árvore e o fruto nas vias fluviais da região. E, claro, a planta é bastante comum na ilha de Marajó que tem exatamente as condições geológicas requeridas para o desenvolvimento da palmeira. A fruta pode ser consumida in natura e dela se produz também um líquido que é quase vinho e pode ser vinagre.


De forma que se tem, em território brasileiro, um legítimo marajá. Que, ao contrário dos correlatos brasilienses que germinaram em todo o solo pátrio, estão restritos à região amazônica, preferencialmente em vastas e alagadas superfícies. Que, também em oposição ao marajonato de classe baixa na casta da escala sócio-política, não são amargos, e sim adocicados. Não são contraproducentes, e sim bastante aproveitáveis - fruto, casca, folhas, tronco. Que, embora pequeno em dimensões, o fruto marajá resgata a palavra do limbo a que foi submetida por tão mal afamada circunstância e a recoloca nas alturas, entre 6 e 8 metros, que é o quão alta pode ser uma palmeira-marajá.

Proclame-se, portanto, que os marajás brasileiros são esses, frutos da terra, e não aqueles, frutos da cobiça. São esses, conhecidos desde sempre pelos índios, e não aqueles, herdados do jugo indiano. São esses os pequenos marajás cujas sementes serviam de adorno aos indígenas e o servem ainda aos nativos, e não aqueles outros, adornados de falsos brilhantes. Não temamos, mais, pois, fazer bom uso da palavra 'marajá'. Que esse uso, cedido pela natureza, não corrompe. Ao contrário, rompe com aquele outro, falso desde a raiz.

O marco doce da minha infância

quinta-feira, 2 de julho de 2009


Por uma defasagem orgânica ou, é fato, por gula nata, sou, desde pequeno, voraz consumidor de pratos doces. Tenho, com sobremesas, guloseimas e cremes, muitos cremes, uma verdadeira relação carnal, primitiva, do tipo que se esfalfa em prazer gutural e glutão ao antever o prato e experimentá-lo, primeiro, com a fome dos olhos e, depois, apaziguar a expectativa com o palato.

Das primeiras sensações doces da minha vida claro está que não as guardo de cabeça. E muito menos na memória gustativa. Mas, em determinado momento, um prato, em particular, fincou pé no meu estômago e fez dali um marco de antes e depois. Foi o pudim.


Creio que os meus primeiros pudins eram de leite ou de pão. Quem sabe disso é a minha mãe. Recordo, vagamente, de pudins assados em banho-maria no forno do fogão a lenha (e quem me trouxe o registro de lá de trás foi o leitor Klaus, que ficou ensimesmado com o fogão a lenha de outras eras). Que, dourados com a calda de açúcar caramelizado, mal podiam esfriar e eu já estava a lhes brindar com ataques de soldados a paliçadas mal guarnecidas.

Entre a primeira e a quarta série primária, estudei no sítio em que nasci e, graças à originalidade daquela época (e me pergunto por que apenas a época de cada um de nós é original e as outras, as demais, são apenas falsificações grosseiras?), conduzida pela professora (sim, da rede pública), de tempos em tempos fazíamos uma espécie de escambo na escola (que está lá ainda, degradada agora) pelo qual cada aluno trazia de casa um prato.


Minha mãe costumava fazer bolos para essas ocasiões - os quais, confesso, desprezava - e, dada a possibilidade altamente promissora de troca, eu avançava nos pudins alheios que as mães dos colegas enviavam. Sempre fui muito guloso, sim.

Para completar o ciclo do pudim na minha infância, minha avó materna sempre os fazia, os pudins. Lindos, pareciam envernizados de tão brilhantes. Invariavelmente massudos, com sustância em si mesmo a desmerecer os pudins industrializados (argh!) e os instantâneos pelos quais basta um liquidificador e um forno de micro-ondas e lá vem o prato, pobre de espírito, de mão na massa e feito para ser consumido como foi produzido: num glup! e já era! Cadê o prazer e o gosto?


Tenho uma receita preciosa de um senhor da minha cidade que considero um dos melhores pudins. Esse senhor era o doceiro oficial, posso dizer. E fazia os melhores doces da cidade. Deixou como herança o talento para a cozinha para as filhas: uma foi minha tia e a outra é uma das boleiras oficiais da minha cidade, com produções que não ficam nada a dever aos bolos de São Paulo. E afirmo isso sem me vangloriar: é apenas fato.

Os pudins são originários de Portugal. Muito ovo, farinha de trigo, açúcar e o ingrediente que varia conforme a receita: leite, pão, queijo, laranja. Há os modernos, que usam produtos industriais como o leite condensado e o leite em pó. Ainda fico com os antigos. No Brasil, acostumado desde os primórdios a praticar a miscigenação, também os pudins se amorenaram: incorporaram o côco, a mandioca, as claras (de sobras de quindim e de ambrosia, que usam apenas as gemas).


Pudim que se preza se faz em banho-maria. Não sei como o fazem em padarias. Mas, quando arrastado pela fatia amarelada coberta de caramelo das vitrines das padarias, nunca encontro o sabor (que se me gravou, este sim, na memória gustativa) familiar, daquele feito no fogão a lenha e, depois, no forno a gás. Quando os faço, sou rigorosamente adepto do velho método.

O engraçado é que o pudim, na Grã-Bretnha, é pudding, e é salgado. O famoso Pudim de Yorkshire, por exemplo, é feito de farinha de trigo e de sangue. E outros feitos de rins e de filés, servidos como prato principal numa refeição. São diferenças culturais. Claro, os há doces, como o pudim de ameixa inglês.


Mas, no caso brasileiro e português, pudim é sobremesa, doce a perder de vista, imerso em calda e gemas, uma verdadeira massa de veleidades que tornam infrutíferas quaisquer tentativas de pudores gastronômicos, se é que comida e pudor podem se postar no mesmo andor.

O que sei dos pudins é que deles nunca enjoei. Longe de mim tal desfeita. Que os conheci em pequeno, feitos em fogões a lenha, com longo período de cozimento na calmaria do banho-maria. Lento o forno, apressado o meu apetite, quando se encontravam, pudim e boca, era um reconforto, um farfalhar de massa nunca tão mole e tampouco dura que, aos poucos (ou não, conforme a falta de recato), dissolvia-se à larga na boca, a festejar o comensal com prazer inexorável ao cometer um daqueles que é chamado de pecado capital. Pois que eu o cometo, contritamente, sem o menor vestígio de estar falto com algo e, claro, disposto a arcar pela falta de remissão. Que, fique explícito, não a busco, a remissão. Não no pudim.

The book is under the table

sábado, 20 de junho de 2009


Sabe o que mais me chama a atenção nas pessoas? A faculdade que todas têm de acumular experiências e aprendizados. Fico espantado com a miscelânea de tarefas que um indivíduo é capaz de cumprir apenas porque aprendeu e reteve informações que, no conjunto, o transformam em um ser completo, auto-suficiente o bastante para se destacar não em uma, duas, cinco áreas, mas em inúmeras atividades a que se propõe.

Um desses luminares da humanidade foi Leonardo da Vinci, alçado à condição de gênio por conta da multiplicidade de talentos, pelo engenho e criatividade voltados para as mais diversas áreas. Da Vinci foi cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, botânico, poeta e músico. Segundo estudo realizado em 1926, o QI (quociente de inteligência) de Da Vinci foi calculado em 180.


O QI, segundo a fórmula adaptada por Lewis Madison Terman em 1916 (e depois disso, há várias derivações), estabelece que se encontra a inteligência de uma pessoa a partir da divisão da idade mental pela idade cronológica multiplicada por 100. Dessa forma, a tabela de Terman classifica assim o QI:

- 141 e acima: genialidade
- 121 - 140: inteligência muito acima da média
- 110 - 120: inteligência acima da média
- 90 - 109: inteligência normal ou média
- 80 - 109: embotamento
- 70 - 79: limítrofe
- 50 - 69: cretino

Não me lembro de ter sido submetido a um teste de QI. O que já denota, por si só, caso o tenha sido, um embotamento da minha parte (entre 80 e 109). Me considero bastante teimoso em algumas questões, das quais não arredo pé, o que sugere que estou ainda na categoria limítrofe (entre 70 e 79) e, para finalizar, fui, como meus colegas de faculdade, chamado de cretino durante dois anos à beira dos fogões, o que me coloca na faixa de 50 a 69. Sem mais comentários.

Volto ao gênio: se a genialidade é medida a partir dos 141 pontos e Da Vinci tinha estimados 180, não é à toa que o italiano, natural da cidade de Vinci (e daí porque Da Vinci), na Toscana, tenha se aventurado nas mais diversas formas de saber.

As áreas cobertas por Da Vinci, descritas acima, não incluem a gastronomia. Mas há um livro - "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci" - editora Record - 209 páginas, que atribuem ao mais famoso pintor renascentista de todos os tempos uma série de apontamentos culinários feitos pelo autor de "Mona Lisa". Esses textos foram encontrados na década de 1980 e indicam que Leonardo da Vinci era vegetariano e chegou, inclusive, a trabalhar em cozinhas de tavernas.

Como nas demais tarefas, também na cozinha Da Vinci se meteu a fazer inúmeras observações e anotações sobre ingredientes e criou ideias para pratos. Credita-se a Da Vinci a invenção, por exemplo, de objetos como os guardanapos e as tampas de panelas. Não há como se provar que os escritos sejam mesmo de Da Vinci, mas os indícios são positivos quanto à autenticidade das anotações gastronômicas do multicultural italiano.

De qualquer forma, o livro é uma peça interessante sobre o ponto de vista do que se comia na Itália ao final do século XV. Transcrevo abaixo uma das receitas de Leonardo da Vinci, a ser consumida com o pensamento sobre um mundo que foi, um dia, contemporâneo, e no qual se vicejava muito para obter ingredientes:

"Sopa Siciliana de Gaudio com Sabor de Fumaça"

"Pegue farinha, água de rosas e gema de ovo e prepare uma massa. Corte-a em tiras compridas que em seguida devem ser enroladas. Deixe que sequem ao sol por dois ou três anos (sic) e, então, jogue-as em caldo gordo junto com queijo ralado, uma pitada de açafrão para dar cor e condimentos doces. Cozinhe-as no fogo sem cobrir a panela com um pano, para que adquira o sabor da fumaça. Gaudio costuma acrescentar uma garrafa de vinho forte à sua porção, mas isso não posso aconselhar, pois costuma fazer com que Gaudio, com frequência, adormeça à mesa."

Não é pitoresco? Claro que, a essa altura, é impossível reproduzir o cenário descrito por Da Vinci: como esperar dois ou três anos, se não podemos esperar duas ou três horas atualmente? E a imprescindível fumaça? Há muito que os fogões a lenha jazem em cinzas, mortas pelos fogo azulado gerado por gases industriais ou, mais radical, pelas frequências emitidas por um forno de micro-ondas.

Mas, se você tiver QI acima do meu, o que é bem provável, conseguirá imaginar a cena na cabeça: uma casa na Itália medieval, numa pequena vila, com o tempo a durar a eternidade e os ingredientes a chegarem dos campos, frescos. Com possibilidades de se experimentar sem pressa, e paciência para esperar por dois ou três anos. E a chaminé de fumaça a espiralar das tavernas, com vinhos grosseiros e gente que, sem o saber, como Gaudio, em plena harmonia de convivência com um gênio daquele tamanho.

Se os apontamentos são ou não de Leonardo da Vinci, não sei dizer. Sei que a imagem é por demais recorrente e bem que poderia ser. Um Da Vinci materializado em meio a panelas e fumaça de uma cozinha encardida, a pensar inconstantemente e criar para todo o sempre.

Um bacalhau para chamar de meu que brota no Sul

terça-feira, 16 de junho de 2009


"Aqui em Floripa come-se muito o abrótea (Urophicys brasiliensis) como o 'bacalhau manezinho'. É uma carne bem firme e que se solta em lascas, como o atum e o salmão", informa, lá de Santa Catarina, o blogueiro e colega Klaus Weiss, do Ideias no Fogão. Eu te digo, Klaus, que é um bacalhau para chamar de meu, de teu e de nosso, bem do Brasil. Dado que bacalhau, em si, não existe, ficamos, você, eu e todo mundo, com o 'bacalhau manezinho', porque os noruegueses e quetais estão para lá de inacessíveis, em temporadas ou não.

Peixe de escama miúda, o abrótea também pode ser encontrado sob os nomes de 'abrote' e apenas 'brota'. Popularmente, como os demais da mesma família de peixes do Hemisfério do Norte (Noruega inclusa), é chamado de bacalhau.


Mas abrótea é genérico e tem várias espécies: Brotula barbata, Gadella maraldi, Phycis blennoides, Phycis phycis, Urophycis cirrata e, finalmente, o 'manezinho', o Urophycis brasiliensis que, como indica o sobrenome é, portanto, do terreiro marítimo do Sul, Floripa inclusa, como bem o informa Klaus.

A ordem que liga o Urophicys brasiliensis ao demais 'bacalhaus' é a de peixes Gadiforme, da qual faz parte o Gadus morhua (bacalhau do Atlântico), o Gadus macrocephalus (do Pacífico) e o Gadus agac (da Groelândia). No entanto, com carne e sabores parecidos, esses peixes não são da mesma família (descendem da mesma ordem mas não têm parentesco): os Gadiforme são da família Gadidae e as abrótea são da família Phycidade. Parece um pouco confuso e é mesmo. Mas são os critérios da gaia ciência que estuda os peixes, a ictiologia.


No Brasil, são duas as espécies de abrótea: a citada Urophycis brasiliensis (conhecida como abrótea) e Urophycis cirrata (abrótea-de-profundidade). Mas, não se engane: a abrótea não é bacalhau fresco. Esse reino das águas é complicado sim. Recorde-se que 1/3 do planeta é composto de água e, portanto, as espécies de peixes são inúmeras, incontáveis na verdade, a partir do dado de que algumas profundidades marítimas, com a tecnologia atual, não podem ser alcançadas pela mão humana.

A não ser que se seja um especialista, um curioso gourmand, um investigador da natureza em seus pormenores ou, mais simples, um morador à beira da fonte de onde vem o peixe, é difícil identificá-los, aos peixes, e apostar que se leva para casa o peixe que se escolhe. Para facilitar, a abrótea tem algumas características que, por si só, claro, não vão me tornar um conhecedor, mas já ajudam a desenhar no cérebro os contornos desse bacalhau que posso chamar de meu (do Brasil): tem escamas diminutas, é de médio porte (de 75 cm e 2,5 quilos), duas nadadeiras dorsais longas, com cores que variam entre parda, marrom-escura ou olivácea e tem o ventre esbranquiçado.


A abrótea pode ser encontrada nas costas Sul e Sudeste (do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro), em alto mar, em águas profundas e vive em formações de areia, lodo ou cascalho. Das duas espécies de Urophycis, a mais comum, a brasiliensis, é encontrada no Atlântico Sul; a cirrata é mais rara: vive em taludes (região do mar que fica em águas profundas entre 200 m a 1 mil metros).

Das profundezas do reino de Poseidon (ou Netuno, caso o prefira), emerge para os pratos, principalmente da Região Sul, e me chega ao conhecimento que há, em água brasilis, finalmente, um bacalhau para chamar de meu, ainda que bacalhau não exista. Caramba! Alguém viu, finalmente, uma cabeça de bacalhau nesse mundo?

De grão em grão, se faz o sharkara

sexta-feira, 12 de junho de 2009


Presume-se que no dia de hoje - 12 de junho, Dia dos Namorados - os movimentos, assim como as comidas, as pessoas e as atitudes, devem ter algo de doce, posto que um dia no qual se celebra algo tão fluido quanto o amor tem que carregar no seu bojo um aroma de mel, um cheiro de iguaria, uma pitada de condimento que dê ao próprio sentimento envolvido - paixão - uma cor, um sabor, uma textura de amante.


Se as almas e corpos celebram-se (os que os têm, os pares) neste dia, mal não fica fazer da comida uma transliteração para o prato: do sabor, que deve ser perfumado, ao paladar, que deve conter açúcares os mais diversos e até mesmo a textura, da pele do(a) amante e do prato, que devem estar naquele exato ponto onde o toque final beira quase a insanidade, de tanto esforço despendido na busca do prazer (os corpos dos amantes) quanto na procura da perfeição (entre os ingredientes e o chef, tal qual dois amantes).


Pois se assim é, assim tratarei esse dia: a açúcar. O vocábulo tem origem antiga, tal qual o mundo, que se divide em doce e amargo: surgiu do sânscrito "sharkara" (grão, areia grossa). Para o português, a tradução veio do árabe "al zukkar". E, para quem não sabe, o açúcar é um tempero. Ué! O sal também é um tempero. Logo, natural que se adoce ou salgue a comida com os respectivos temperos. Obtém-se o açúcar a partir da beterraba (forma mais arcaica) e da cana-de-açúcar. A forma mais comum de açúcar é a sacarose, sólida ou cristal.


Mas há vários tipos de açúcares: glicose, frutose, galactose, manose, pentose, ribose, maltose, lactose, rafinose, amido e glicogênio. A sacarose gera várias formas de açúcares: o mascavo (ou bruto), que é algo petrificado, de uma cor que varia entre o caramelo e o marrom e é resultado da cristalização do mel-de-engenho (quase melaço); demerara, que é granulado, de cor amarela, e consiste na purgação (purificação) do mascavo; refinado granulado, que já é um produto puro, sem corantes, sem umidade ou empedramento e com cristais bem definidos, mais usado por confeiteiros; refinado amorfo, de dissolução rápida, fino e branco, para uso doméstico em bolos, confeitos e caldas; glaçúcar, ou popularmente chamado de "açúcar de confeiteiro", cujos grânulos são bem finos e cristalinos - a produção é feita diretamente nas usinas -, que tem uso mais apropriado na indústria, para fazer massas, confeitos, biscoitos e bebidas; xarope invertido, ou açúcar líquido, para frutas em calda, balas, caramelos, licores, geleias, biscoitos e bebidas; xarope simples, para bebidas, balas e doces; e açúcar orgânico, o qual a maior característica é a ausência de aditivos, o que resulta em cor clara ou dourada.


No Brasil, o ápice do ciclo da cana-de-açúcar ocorreu na época da colônia (entre os séculos XVI e XVII). Ainda assim, o País é o maior produtor e exportador mundial de açúcar de cana. Os tipos exportados são o refinado, o cristal e o demerara.


Com tanta brancura doce a nos cercar, era de se esperar que fossemos mais doces, os brasileiros, do que o somos, aparentemente. Ou então o somos, sim, mais doces do que os demais habitantes do planeta: nosso consumo médio é de 52 quilos por pessoa/ano, enquanto o resto do mundo contenta-se com 22 quilos por pessoa/ano, ou menos da metade. Será que isso explica em algum patamar sociológico a docilidade desse povo brasileiro ante tantos descalabros? Ou nossa afinidade eletiva (e nunca seletiva) com todas as demais pessoas, na média?


Portanto, que o dia lhe seja doce, cheio desse branco véu que, em aspersão, mais parece um chuvisco de neve. Em cocção, vai do branco ao dourado, com matizes os mais vários. Apega-se bem aos pratos, e não desanda a destemperar nada. Ao contrário, em situações de emergência, recomenda-se, sempre e antes de tudo, que se tome um copo d'água com açúcar.


E não há que se deixar de admirar as pessoas que fazem doces - artesanal ou profissionalmente -, pois que estão a compartilhar a doçura, sua própria e do ingrediente em si, para os outros. Uma pitada a mais e se tem aquela caldinha que desenha um vinco de sorriso; uma esfregadinha dos grãos na broa, na rosca, sobre o cural, na salada de frutas, me dá cá uma colherzinha mais para o café e tudo se adoça, se acalma.


Por desencontro entre eras tecnológicas, não presenciei o funcionamento de um engenho. Pois que se fazia açúcar bruto em casa mesmo. Cheguei a tempo de ver funcionar a máquina que faz a garapa que, em cosida, gera o melaço e daí a rapadura, da qual se diz "que é doce mas não é mole, não".

Pois que por certo são as pessoas, lá nos seus íntimos, a serem doces porém não moles, pelo menos ao primeiro contato que, depois de um esfrega aqui e uma alisadinha ali, se desmancham, sim, doces que não se adivinhavam nas cascas. Deve ser, repito, a quantidade de açúcar ingerido. Ao mais amargo dos seres lhe emergirá, em algum momento, a necessidade de reduzir o açodamento e também adocicar o fel da vida.