Por uma defasagem orgânica ou, é fato, por gula nata, sou, desde pequeno, voraz consumidor de pratos doces. Tenho, com sobremesas, guloseimas e cremes, muitos cremes, uma verdadeira relação carnal, primitiva, do tipo que se esfalfa em prazer gutural e glutão ao antever o prato e experimentá-lo, primeiro, com a fome dos olhos e, depois, apaziguar a expectativa com o palato.
Das primeiras sensações doces da minha vida claro está que não as guardo de cabeça. E muito menos na memória gustativa. Mas, em determinado momento, um prato, em particular, fincou pé no meu estômago e fez dali um marco de antes e depois. Foi o pudim.
Creio que os meus primeiros pudins eram de leite ou de pão. Quem sabe disso é a minha mãe. Recordo, vagamente, de pudins assados em banho-maria no forno do fogão a lenha (e quem me trouxe o registro de lá de trás foi o leitor Klaus, que ficou ensimesmado com o fogão a lenha de outras eras). Que, dourados com a calda de açúcar caramelizado, mal podiam esfriar e eu já estava a lhes brindar com ataques de soldados a paliçadas mal guarnecidas.
Entre a primeira e a quarta série primária, estudei no sítio em que nasci e, graças à originalidade daquela época (e me pergunto por que apenas a época de cada um de nós é original e as outras, as demais, são apenas falsificações grosseiras?), conduzida pela professora (sim, da rede pública), de tempos em tempos fazíamos uma espécie de escambo na escola (que está lá ainda, degradada agora) pelo qual cada aluno trazia de casa um prato.
Minha mãe costumava fazer bolos para essas ocasiões - os quais, confesso, desprezava - e, dada a possibilidade altamente promissora de troca, eu avançava nos pudins alheios que as mães dos colegas enviavam. Sempre fui muito guloso, sim.
Para completar o ciclo do pudim na minha infância, minha avó materna sempre os fazia, os pudins. Lindos, pareciam envernizados de tão brilhantes. Invariavelmente massudos, com sustância em si mesmo a desmerecer os pudins industrializados (argh!) e os instantâneos pelos quais basta um liquidificador e um forno de micro-ondas e lá vem o prato, pobre de espírito, de mão na massa e feito para ser consumido como foi produzido: num glup! e já era! Cadê o prazer e o gosto?
Tenho uma receita preciosa de um senhor da minha cidade que considero um dos melhores pudins. Esse senhor era o doceiro oficial, posso dizer. E fazia os melhores doces da cidade. Deixou como herança o talento para a cozinha para as filhas: uma foi minha tia e a outra é uma das boleiras oficiais da minha cidade, com produções que não ficam nada a dever aos bolos de São Paulo. E afirmo isso sem me vangloriar: é apenas fato.
Os pudins são originários de Portugal. Muito ovo, farinha de trigo, açúcar e o ingrediente que varia conforme a receita: leite, pão, queijo, laranja. Há os modernos, que usam produtos industriais como o leite condensado e o leite em pó. Ainda fico com os antigos. No Brasil, acostumado desde os primórdios a praticar a miscigenação, também os pudins se amorenaram: incorporaram o côco, a mandioca, as claras (de sobras de quindim e de ambrosia, que usam apenas as gemas).
Pudim que se preza se faz em banho-maria. Não sei como o fazem em padarias. Mas, quando arrastado pela fatia amarelada coberta de caramelo das vitrines das padarias, nunca encontro o sabor (que se me gravou, este sim, na memória gustativa) familiar, daquele feito no fogão a lenha e, depois, no forno a gás. Quando os faço, sou rigorosamente adepto do velho método.
O engraçado é que o pudim, na Grã-Bretnha, é pudding, e é salgado. O famoso Pudim de Yorkshire, por exemplo, é feito de farinha de trigo e de sangue. E outros feitos de rins e de filés, servidos como prato principal numa refeição. São diferenças culturais. Claro, os há doces, como o pudim de ameixa inglês.
Mas, no caso brasileiro e português, pudim é sobremesa, doce a perder de vista, imerso em calda e gemas, uma verdadeira massa de veleidades que tornam infrutíferas quaisquer tentativas de pudores gastronômicos, se é que comida e pudor podem se postar no mesmo andor.
O que sei dos pudins é que deles nunca enjoei. Longe de mim tal desfeita. Que os conheci em pequeno, feitos em fogões a lenha, com longo período de cozimento na calmaria do banho-maria. Lento o forno, apressado o meu apetite, quando se encontravam, pudim e boca, era um reconforto, um farfalhar de massa nunca tão mole e tampouco dura que, aos poucos (ou não, conforme a falta de recato), dissolvia-se à larga na boca, a festejar o comensal com prazer inexorável ao cometer um daqueles que é chamado de pecado capital. Pois que eu o cometo, contritamente, sem o menor vestígio de estar falto com algo e, claro, disposto a arcar pela falta de remissão. Que, fique explícito, não a busco, a remissão. Não no pudim.
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5 Responses to “O marco doce da minha infância”
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Phalla
¡¡¡ Madre mía !!!. Me tienes con la boca hecha aguas.¡¡¡Que bueno todo !!!.
4 de julho de 2009 às 22:08¿Por qué será que esos sabores, aromas de la infancia nunca jamás se olvidan?.
Que te aproveche... tu que puedes.
Saludos de España.
Silcana ¡ Madre mía que te lo dijo yo ! De lo que no se puede, en realidad. Se puede con lo gusto en la memoria y no para el consumo, que las papilas a mi me saltán como la salivación de rezadeiras. Por el momento, celebro sólo la memoria de la infancia. Saludos desde Brasil, com los budines, pasteles y bocadillos de España que también se encuentran en coro con los sabores de esta tierra aquí. Beso!
5 de julho de 2009 às 18:10Olá!!!
12 de fevereiro de 2011 às 13:50Meus olhos encheram d'água de tanta saudade....parabéns, você conseguiu fazer-me voltar à infância.
Amei tudo! Muita luz é o que desejo a você!
RosanaLeite/Brasilia
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