A falta que a comida caipira faz ao caipira

sábado, 14 de novembro de 2009

Oiiiiii!!!! O blog não morreu, o blog está vivo, salve o blog! Me desculpem todos que o acessam esporadicamente ou mais frequentemente. A ausência completa (não absoluta, por eventualmente responder aos comentários) deve-se, sobretudo, ao trabalho.

O fato de ter dois blogs - se você ainda não conhece, visite o Por uma Second Life menos ordinária, este sim atualizado diariamente - fez com que eu fosse algo negligente com este querido espaço que é o Manifesto Terreiroir. E o fato de ser um social networks addict (tenho perfis em quase todas as redes sociais que você possa imaginar) me toma um tempo demasiado.



Mas acho que a explicação é mais complicada do que apenas a singela falta de tempo: concluí a faculdade de gastronomia no ano passado (e já até colei grau). Como, de lá para cá, a cozinha tornou-se apenas doméstica, sinto que meu ânimo arrefeceu e, junto com ele, as chamas que alimentavam o fogareiro deste blog.

Resolvi postar, portanto, algo sobre a comida caipira do Estado de São Paulo. Meu codinome 'Redneck' significa, em português, 'caipira'. Os rednecks norte-americanos são uns sujeitos toscos, dados a atitudes bastante bregas. Este Redneck que vos escreve não é exatamente tosco. Mas me apropriei do conceito de redneck para aludir à caipirice. Que não é brega. É rica no sentido de ter um histórico cultural, de pertencer à terra e, portanto, a um determinado terreiroir que me é implícito.

Ontem fui jantar num restaurante moderninho. A cozinha faz uma mistura entre elementos brasileiros e tailandeses e se pretende contemporânea. Ao pedir meu prato, me ocorreu que aquelas delicadas tirinhas de frango envolvidas em molho espesso de curry e acompanhadas de vagem na manteiga não são propriamente mais saborosas que o velho e bom frango de panela que a minha mãe e, antes dela, minha avó, fazem e muito bem.

Sempre gostei de carne de frango. Acho que é a minha preferida - antes da carne bovina e de peixe, por exemplo. A comida caipira (poderia cunhar o conceito de 'redneck food' para isso) é, tipicamente, um conjunto de pratos típicos do interior de São Paulo (e interior é longe do mar e do entorno urbano da Grande São Paulo).



Era feita no fogo-de-chão, na trempe (um artefato similar às grades dos fogões a gás). A trempe antiga era ainda mais rude: podia ser um arco de ferro apoiado sobre um tripé no qual se coloca a panela ao fogo ou, ainda, três pedras, dispostas em triângulo, sobre as quais se assentava a panela ou caldeirão ao fogo (veja a foto acima). É estranho mas, para fazer a relação com a imagem, imagine os westerns norte-americanos: os cowboys do Velho Oeste dos EUA usavam esses fogões primitivos para fazer o café e as refeições. Nem tão estranho: isso remete de novo ao redneck no sentido de caipira. Tal qual este blogueiro e vaqueiros que conduziram suas tropas por este sertão que era o Estado de São Paulo.

Justamente os tropeiros foram os homens (olha aí há quanto tempo os homens estão na cozinha!) que disseminaram a gastronomia caipira de São Paulo para o Brasil. Os pratos estão nas nossas mesas até hoje: leitão à pururuca, cuscuz de legumes, pamonha, arroz tropeiro, bolinho caipira, vaca atolada, fango caipira (hummmm... deu até água na boca), furrundum (doce de cidra ou mamão verde ralado com rapadura derretida), farofa de linguiça, angu, virado à paulista, farofa de içá, doce de bananinha e outros, muitos outros. Poderia desfiar um rosário de pratos e ainda não terminaria a reza.

De forma que senti falta de pratos de casa, caseiros, com gosto de fogão a lenha. E sem gosto de fumaça. Mas o frango a borbulhar em panelas de ferro, com o caldo avermelhado pelo urucum e o cheiro verde - e, de vez em quando, se fosse época, milho verde - é impagável. Salivo gratuitamente apenas com a descrição. Esse caipira aqui foi tomado pelo falta dessa comida caipira.

É tempo de reconciliação

terça-feira, 4 de agosto de 2009


De repente, instado por uma urgente necessidade básica de cuidar do corpo, que do espírito já não sei se posso fazê-lo, sou, sem mais nem porque, jogado aos leões feito Daniel. Mas, sendo eu próprio um leão, o fato, por si só, não me aflige: leoninamente, balanço a juba e sigo impávido.

Esses leões, de fato, estão mais para quimeras. E não me julgue muito rigorosamente pois que tento me reconciliar com todo um universo de frutas, verduras e legumes (as minhas quimeras, pois), da forma mais responsável possível, e, um pouquinho que seja, de maneira satisfatória.


Eu sei, eu sei! Da forma como coloco, parece que estou a ir ao cadafalso. Não é de todo falso esse sentimento. Mas, eu, gastrônomo, aliado do ingrediente, sou bastante refratário ao consumo das amplas famílias, linhagens, ramificações e folhas, principalmente folhas, dos legumes, verduras e frutas.

Encostado em paredes semelhantes a paredões de fuzilamento e acuado por invisíveis fuzis, me rendo e peço clemência. Mas não de todo. Sou bastante dissimulado quando a estratégia o pede e resolvi fazer dessa nova etapa dietética que me é imposta uma potencial aliança com a verdejante flora comestível. Resolvi sondar o adversário (claro, na concepção do meu paladar) e me unir às suas próprias tropas, tão verdes quanto os olivais uniformes de exércitos.


O fato 1 é que gosto de carne, massas e doces. Em profusão. Verdadeiros oceanos desses alimentos. O fato 2 é que me estão praticamente proibidos. E, assim interditados, me parecem ainda mais excitantes. Ai!

Quando confrontado com ingredientes saudáveis (e o são, admito), a primeira coisa que me vem à cabeça, de forma estranha, é o chuchu. Não se ria. Não sei porque. O chuchu (Sechium edule) é uma hortaliça-fruto, também chamado de machucho e caiota (nos Açores). Para mim, o chuchu é insosso. Não faz minha saliva porejar, perigosa. Não tem gosto. Nada. Vejo apenas a carne macia do chuchu, cozida em água e sal (pouco) e só. Se não fosse a ácida companhia do limão, o chuchu, oh!, seria apenas chuchu.

Chuqrinho que só, de tão sem gosto. Mas, prometi tempos de paz entre eu mesmo e os caros vegetais, legumes e frutas que deverão trabalhar em equipe para me recompor. E, colocado assim, tenho que ter um relacionamento, no mínimo, de respeito com todos esses alimentos.


Não sei porque ocorre essa desintimidade entre o chuchu e eu. Nunca brigamos, de fato. Eu é que, emburrado, me faço de rogado. Talvez haja um certo desdém de minha parte porque o fruto nem da terra é. É vizinho, mas vizinho não é de casa, pois não? Acredita-se que o chuchu vem da América Central, principalmente da Costa Rica e Panamá. Não sei como chegou ao Brasil mas está aqui, impávido a me fitar de suas trepadeiras folhagens. Quando o manto das Américas levantaram nações outras, parece que o chuchu trepava em ramagens fortes no Caribe.

Os astecas, povo desconhecido e misterioso, o destacavam entre as hortaliças e se o faziam, não há de ser eu, uma mixórdia de raças em mim mesmo, que devo desfazê-lo. É uma hortaliça generosa e, suave, pode ser consumida à vontade, o ano todo. É rica em fibras (das quais tenho grande necessidade nesse momento) e pobre em calorias (as quais posso desprezar em toneladas).


Na Ilha da Madeira, leva um nome mais atraente: pepinela ou pimpinela e é ingrediente da gastronomia local. Come-se, na Madeira, chuchu com feijão, batatas e milho para acompanhar, sobretudo, caldeiradas de peixe.

A família ramifica-se em outras conhecidas hortaliças, às quais também terei que prestar continência e demonstrar um pouco de apreço: pepino, abóbora, melão e melancia. Para minha surpresa - e por isso a importância de se conhecer o inimigo, ops!, o colega - o chuchu tem uma ampla variedade de forma, tamanho e cor. Pode ser arredondado ou em formato de pêra. A casca pode ser lisa ou com espinhos e a cor vai do branco ao verde escuro.

Não se consome o chuchu in natura. Deve ser cozido ou refogado e transformado em sopas, cremes, suflês, bolos ou saladas. Outro dado novo para mim: pode-se consumir as folhas, brotos e raízes do chuchu.


Ainda não estou de todo apaixonado por esse fruto-hortaliça. Mas, o fato de eu escrever sobre o chuchu mostra (espero) uma tentativa de nos darmos bem. De limpar entre nós dois quaisquer resquícios de incivilidade. Eu preciso de chuchu. O chuchu não depende de mim. Simples assim.

Estou aqui, cá com meus botões, a imaginar que posso aguentar essas novas trincheiras. Chuchu com camarão é bom, afinal. OK! Sei que não convenci de todo, mas hei de me unir às hostes verdes do alimento da terra. Ou verde ficarei eu de outras coisas tão estranhas que poderão ser creditadas à Marte, caso o sejam, os marcianos, efetivamente verdes. Por enquanto, apenas tremo feito vara verde enquanto não ocorre a aproximação desse vastíssimo contingente verde que me livrará de todos os males. Amém!

Em defesa do reinado do marajá brasileiro

terça-feira, 7 de julho de 2009


Gasta pelo uso político fundado na era Collor, a palavra 'marajá' nos causa, a nós brasileiros, de imediato, repulsa. O termo foi apropriado nos anos 90 no Brasil para definir a casta de políticos e respectivos apadrinhados mantidos em empregos-fantasmas. Assim, esses 'marajás' brasileiros eram funcionários públicos regiamente pagos com altos salários e, na prática, não exerciam função alguma.

O Brasil, ainda que não tenha um sistema de castas aos moldes da Índia, incorporou muito bem ao menos esse escalão, os dos maha-rajá, que tinham, sim, pequenos feudos sobre os quais agiam conforme os correspondentes marajás indianos: com mandos e desmandos e muito poder regado a dinheiro público. Houve, ao final do marajonato de Collor, uma verdadeira caça aos marajás brasileiros e, embora a limpeza tenha sido bastante eficiente, restam uns e outros à margem de Ganges tropicais imaginários, prontos para reassumir igualmente fantasiosos reinados. Há que se manter vigília permanente, portanto, para que esses reis não retomem cepos, tronos e coroas e venham a triunfar em desfiles tão flagrantes quanto elefantes em procissão na Ásia.

Por conta da má fama, a palavra 'marajá' é precedida, portanto, de preâmbulos como esse que acabei de descrever acima. Causa azia e ânsia mal contida nos estômagos um tanto quanto sensíveis das pessoas que viveram aquela era peculiar com predominância de entes estranhos ao paladar nacional como marajás, oriundos de tão distantes reinos que o eram os autênticos indianos.

Bem, essa preleção toda é para que fique registrado na memória que há, pelo menos, um marajá legítimo, de raiz brasileira, e que nada tem que ver com reinos, Índia e muito menos com comportamentos políticos que merecem fogueira em praça pública.


Marajá é o nome de um fruto do marajazeiro, uma palmeira nativa da Amazônia. O marajá (Pyrenoglyphis maruja) brasileiro tem o tamanho de uma azeitona e o formato de um côco, cujas cascas podem ser roxas ou pretas. A polpa é branca e pode tender também para o rosa, com leve sabor que transita entre o adocicado e o azedo.

Popularmente, a árvore marajazeiro é conhecida como palmeira-marajá e o produto principal do fruto é o licor de Marajá, assim, grafado em maiúscula para designar, de forma respeitosa, um fruto nativo das matas amazônicas, e mais especificamente encontrado nas extensões da floresta que chega ao Pará.

A palmeira é silvestre e desenvolve-se bem em terrenos alagados, às margens dos rios e igarapés da Amazônia. Tanto que é comum encontrar a árvore e o fruto nas vias fluviais da região. E, claro, a planta é bastante comum na ilha de Marajó que tem exatamente as condições geológicas requeridas para o desenvolvimento da palmeira. A fruta pode ser consumida in natura e dela se produz também um líquido que é quase vinho e pode ser vinagre.


De forma que se tem, em território brasileiro, um legítimo marajá. Que, ao contrário dos correlatos brasilienses que germinaram em todo o solo pátrio, estão restritos à região amazônica, preferencialmente em vastas e alagadas superfícies. Que, também em oposição ao marajonato de classe baixa na casta da escala sócio-política, não são amargos, e sim adocicados. Não são contraproducentes, e sim bastante aproveitáveis - fruto, casca, folhas, tronco. Que, embora pequeno em dimensões, o fruto marajá resgata a palavra do limbo a que foi submetida por tão mal afamada circunstância e a recoloca nas alturas, entre 6 e 8 metros, que é o quão alta pode ser uma palmeira-marajá.

Proclame-se, portanto, que os marajás brasileiros são esses, frutos da terra, e não aqueles, frutos da cobiça. São esses, conhecidos desde sempre pelos índios, e não aqueles, herdados do jugo indiano. São esses os pequenos marajás cujas sementes serviam de adorno aos indígenas e o servem ainda aos nativos, e não aqueles outros, adornados de falsos brilhantes. Não temamos, mais, pois, fazer bom uso da palavra 'marajá'. Que esse uso, cedido pela natureza, não corrompe. Ao contrário, rompe com aquele outro, falso desde a raiz.

O marco doce da minha infância

quinta-feira, 2 de julho de 2009


Por uma defasagem orgânica ou, é fato, por gula nata, sou, desde pequeno, voraz consumidor de pratos doces. Tenho, com sobremesas, guloseimas e cremes, muitos cremes, uma verdadeira relação carnal, primitiva, do tipo que se esfalfa em prazer gutural e glutão ao antever o prato e experimentá-lo, primeiro, com a fome dos olhos e, depois, apaziguar a expectativa com o palato.

Das primeiras sensações doces da minha vida claro está que não as guardo de cabeça. E muito menos na memória gustativa. Mas, em determinado momento, um prato, em particular, fincou pé no meu estômago e fez dali um marco de antes e depois. Foi o pudim.


Creio que os meus primeiros pudins eram de leite ou de pão. Quem sabe disso é a minha mãe. Recordo, vagamente, de pudins assados em banho-maria no forno do fogão a lenha (e quem me trouxe o registro de lá de trás foi o leitor Klaus, que ficou ensimesmado com o fogão a lenha de outras eras). Que, dourados com a calda de açúcar caramelizado, mal podiam esfriar e eu já estava a lhes brindar com ataques de soldados a paliçadas mal guarnecidas.

Entre a primeira e a quarta série primária, estudei no sítio em que nasci e, graças à originalidade daquela época (e me pergunto por que apenas a época de cada um de nós é original e as outras, as demais, são apenas falsificações grosseiras?), conduzida pela professora (sim, da rede pública), de tempos em tempos fazíamos uma espécie de escambo na escola (que está lá ainda, degradada agora) pelo qual cada aluno trazia de casa um prato.


Minha mãe costumava fazer bolos para essas ocasiões - os quais, confesso, desprezava - e, dada a possibilidade altamente promissora de troca, eu avançava nos pudins alheios que as mães dos colegas enviavam. Sempre fui muito guloso, sim.

Para completar o ciclo do pudim na minha infância, minha avó materna sempre os fazia, os pudins. Lindos, pareciam envernizados de tão brilhantes. Invariavelmente massudos, com sustância em si mesmo a desmerecer os pudins industrializados (argh!) e os instantâneos pelos quais basta um liquidificador e um forno de micro-ondas e lá vem o prato, pobre de espírito, de mão na massa e feito para ser consumido como foi produzido: num glup! e já era! Cadê o prazer e o gosto?


Tenho uma receita preciosa de um senhor da minha cidade que considero um dos melhores pudins. Esse senhor era o doceiro oficial, posso dizer. E fazia os melhores doces da cidade. Deixou como herança o talento para a cozinha para as filhas: uma foi minha tia e a outra é uma das boleiras oficiais da minha cidade, com produções que não ficam nada a dever aos bolos de São Paulo. E afirmo isso sem me vangloriar: é apenas fato.

Os pudins são originários de Portugal. Muito ovo, farinha de trigo, açúcar e o ingrediente que varia conforme a receita: leite, pão, queijo, laranja. Há os modernos, que usam produtos industriais como o leite condensado e o leite em pó. Ainda fico com os antigos. No Brasil, acostumado desde os primórdios a praticar a miscigenação, também os pudins se amorenaram: incorporaram o côco, a mandioca, as claras (de sobras de quindim e de ambrosia, que usam apenas as gemas).


Pudim que se preza se faz em banho-maria. Não sei como o fazem em padarias. Mas, quando arrastado pela fatia amarelada coberta de caramelo das vitrines das padarias, nunca encontro o sabor (que se me gravou, este sim, na memória gustativa) familiar, daquele feito no fogão a lenha e, depois, no forno a gás. Quando os faço, sou rigorosamente adepto do velho método.

O engraçado é que o pudim, na Grã-Bretnha, é pudding, e é salgado. O famoso Pudim de Yorkshire, por exemplo, é feito de farinha de trigo e de sangue. E outros feitos de rins e de filés, servidos como prato principal numa refeição. São diferenças culturais. Claro, os há doces, como o pudim de ameixa inglês.


Mas, no caso brasileiro e português, pudim é sobremesa, doce a perder de vista, imerso em calda e gemas, uma verdadeira massa de veleidades que tornam infrutíferas quaisquer tentativas de pudores gastronômicos, se é que comida e pudor podem se postar no mesmo andor.

O que sei dos pudins é que deles nunca enjoei. Longe de mim tal desfeita. Que os conheci em pequeno, feitos em fogões a lenha, com longo período de cozimento na calmaria do banho-maria. Lento o forno, apressado o meu apetite, quando se encontravam, pudim e boca, era um reconforto, um farfalhar de massa nunca tão mole e tampouco dura que, aos poucos (ou não, conforme a falta de recato), dissolvia-se à larga na boca, a festejar o comensal com prazer inexorável ao cometer um daqueles que é chamado de pecado capital. Pois que eu o cometo, contritamente, sem o menor vestígio de estar falto com algo e, claro, disposto a arcar pela falta de remissão. Que, fique explícito, não a busco, a remissão. Não no pudim.

The book is under the table

sábado, 20 de junho de 2009


Sabe o que mais me chama a atenção nas pessoas? A faculdade que todas têm de acumular experiências e aprendizados. Fico espantado com a miscelânea de tarefas que um indivíduo é capaz de cumprir apenas porque aprendeu e reteve informações que, no conjunto, o transformam em um ser completo, auto-suficiente o bastante para se destacar não em uma, duas, cinco áreas, mas em inúmeras atividades a que se propõe.

Um desses luminares da humanidade foi Leonardo da Vinci, alçado à condição de gênio por conta da multiplicidade de talentos, pelo engenho e criatividade voltados para as mais diversas áreas. Da Vinci foi cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, botânico, poeta e músico. Segundo estudo realizado em 1926, o QI (quociente de inteligência) de Da Vinci foi calculado em 180.


O QI, segundo a fórmula adaptada por Lewis Madison Terman em 1916 (e depois disso, há várias derivações), estabelece que se encontra a inteligência de uma pessoa a partir da divisão da idade mental pela idade cronológica multiplicada por 100. Dessa forma, a tabela de Terman classifica assim o QI:

- 141 e acima: genialidade
- 121 - 140: inteligência muito acima da média
- 110 - 120: inteligência acima da média
- 90 - 109: inteligência normal ou média
- 80 - 109: embotamento
- 70 - 79: limítrofe
- 50 - 69: cretino

Não me lembro de ter sido submetido a um teste de QI. O que já denota, por si só, caso o tenha sido, um embotamento da minha parte (entre 80 e 109). Me considero bastante teimoso em algumas questões, das quais não arredo pé, o que sugere que estou ainda na categoria limítrofe (entre 70 e 79) e, para finalizar, fui, como meus colegas de faculdade, chamado de cretino durante dois anos à beira dos fogões, o que me coloca na faixa de 50 a 69. Sem mais comentários.

Volto ao gênio: se a genialidade é medida a partir dos 141 pontos e Da Vinci tinha estimados 180, não é à toa que o italiano, natural da cidade de Vinci (e daí porque Da Vinci), na Toscana, tenha se aventurado nas mais diversas formas de saber.

As áreas cobertas por Da Vinci, descritas acima, não incluem a gastronomia. Mas há um livro - "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci" - editora Record - 209 páginas, que atribuem ao mais famoso pintor renascentista de todos os tempos uma série de apontamentos culinários feitos pelo autor de "Mona Lisa". Esses textos foram encontrados na década de 1980 e indicam que Leonardo da Vinci era vegetariano e chegou, inclusive, a trabalhar em cozinhas de tavernas.

Como nas demais tarefas, também na cozinha Da Vinci se meteu a fazer inúmeras observações e anotações sobre ingredientes e criou ideias para pratos. Credita-se a Da Vinci a invenção, por exemplo, de objetos como os guardanapos e as tampas de panelas. Não há como se provar que os escritos sejam mesmo de Da Vinci, mas os indícios são positivos quanto à autenticidade das anotações gastronômicas do multicultural italiano.

De qualquer forma, o livro é uma peça interessante sobre o ponto de vista do que se comia na Itália ao final do século XV. Transcrevo abaixo uma das receitas de Leonardo da Vinci, a ser consumida com o pensamento sobre um mundo que foi, um dia, contemporâneo, e no qual se vicejava muito para obter ingredientes:

"Sopa Siciliana de Gaudio com Sabor de Fumaça"

"Pegue farinha, água de rosas e gema de ovo e prepare uma massa. Corte-a em tiras compridas que em seguida devem ser enroladas. Deixe que sequem ao sol por dois ou três anos (sic) e, então, jogue-as em caldo gordo junto com queijo ralado, uma pitada de açafrão para dar cor e condimentos doces. Cozinhe-as no fogo sem cobrir a panela com um pano, para que adquira o sabor da fumaça. Gaudio costuma acrescentar uma garrafa de vinho forte à sua porção, mas isso não posso aconselhar, pois costuma fazer com que Gaudio, com frequência, adormeça à mesa."

Não é pitoresco? Claro que, a essa altura, é impossível reproduzir o cenário descrito por Da Vinci: como esperar dois ou três anos, se não podemos esperar duas ou três horas atualmente? E a imprescindível fumaça? Há muito que os fogões a lenha jazem em cinzas, mortas pelos fogo azulado gerado por gases industriais ou, mais radical, pelas frequências emitidas por um forno de micro-ondas.

Mas, se você tiver QI acima do meu, o que é bem provável, conseguirá imaginar a cena na cabeça: uma casa na Itália medieval, numa pequena vila, com o tempo a durar a eternidade e os ingredientes a chegarem dos campos, frescos. Com possibilidades de se experimentar sem pressa, e paciência para esperar por dois ou três anos. E a chaminé de fumaça a espiralar das tavernas, com vinhos grosseiros e gente que, sem o saber, como Gaudio, em plena harmonia de convivência com um gênio daquele tamanho.

Se os apontamentos são ou não de Leonardo da Vinci, não sei dizer. Sei que a imagem é por demais recorrente e bem que poderia ser. Um Da Vinci materializado em meio a panelas e fumaça de uma cozinha encardida, a pensar inconstantemente e criar para todo o sempre.

Um bacalhau para chamar de meu que brota no Sul

terça-feira, 16 de junho de 2009


"Aqui em Floripa come-se muito o abrótea (Urophicys brasiliensis) como o 'bacalhau manezinho'. É uma carne bem firme e que se solta em lascas, como o atum e o salmão", informa, lá de Santa Catarina, o blogueiro e colega Klaus Weiss, do Ideias no Fogão. Eu te digo, Klaus, que é um bacalhau para chamar de meu, de teu e de nosso, bem do Brasil. Dado que bacalhau, em si, não existe, ficamos, você, eu e todo mundo, com o 'bacalhau manezinho', porque os noruegueses e quetais estão para lá de inacessíveis, em temporadas ou não.

Peixe de escama miúda, o abrótea também pode ser encontrado sob os nomes de 'abrote' e apenas 'brota'. Popularmente, como os demais da mesma família de peixes do Hemisfério do Norte (Noruega inclusa), é chamado de bacalhau.


Mas abrótea é genérico e tem várias espécies: Brotula barbata, Gadella maraldi, Phycis blennoides, Phycis phycis, Urophycis cirrata e, finalmente, o 'manezinho', o Urophycis brasiliensis que, como indica o sobrenome é, portanto, do terreiro marítimo do Sul, Floripa inclusa, como bem o informa Klaus.

A ordem que liga o Urophicys brasiliensis ao demais 'bacalhaus' é a de peixes Gadiforme, da qual faz parte o Gadus morhua (bacalhau do Atlântico), o Gadus macrocephalus (do Pacífico) e o Gadus agac (da Groelândia). No entanto, com carne e sabores parecidos, esses peixes não são da mesma família (descendem da mesma ordem mas não têm parentesco): os Gadiforme são da família Gadidae e as abrótea são da família Phycidade. Parece um pouco confuso e é mesmo. Mas são os critérios da gaia ciência que estuda os peixes, a ictiologia.


No Brasil, são duas as espécies de abrótea: a citada Urophycis brasiliensis (conhecida como abrótea) e Urophycis cirrata (abrótea-de-profundidade). Mas, não se engane: a abrótea não é bacalhau fresco. Esse reino das águas é complicado sim. Recorde-se que 1/3 do planeta é composto de água e, portanto, as espécies de peixes são inúmeras, incontáveis na verdade, a partir do dado de que algumas profundidades marítimas, com a tecnologia atual, não podem ser alcançadas pela mão humana.

A não ser que se seja um especialista, um curioso gourmand, um investigador da natureza em seus pormenores ou, mais simples, um morador à beira da fonte de onde vem o peixe, é difícil identificá-los, aos peixes, e apostar que se leva para casa o peixe que se escolhe. Para facilitar, a abrótea tem algumas características que, por si só, claro, não vão me tornar um conhecedor, mas já ajudam a desenhar no cérebro os contornos desse bacalhau que posso chamar de meu (do Brasil): tem escamas diminutas, é de médio porte (de 75 cm e 2,5 quilos), duas nadadeiras dorsais longas, com cores que variam entre parda, marrom-escura ou olivácea e tem o ventre esbranquiçado.


A abrótea pode ser encontrada nas costas Sul e Sudeste (do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro), em alto mar, em águas profundas e vive em formações de areia, lodo ou cascalho. Das duas espécies de Urophycis, a mais comum, a brasiliensis, é encontrada no Atlântico Sul; a cirrata é mais rara: vive em taludes (região do mar que fica em águas profundas entre 200 m a 1 mil metros).

Das profundezas do reino de Poseidon (ou Netuno, caso o prefira), emerge para os pratos, principalmente da Região Sul, e me chega ao conhecimento que há, em água brasilis, finalmente, um bacalhau para chamar de meu, ainda que bacalhau não exista. Caramba! Alguém viu, finalmente, uma cabeça de bacalhau nesse mundo?

De grão em grão, se faz o sharkara

sexta-feira, 12 de junho de 2009


Presume-se que no dia de hoje - 12 de junho, Dia dos Namorados - os movimentos, assim como as comidas, as pessoas e as atitudes, devem ter algo de doce, posto que um dia no qual se celebra algo tão fluido quanto o amor tem que carregar no seu bojo um aroma de mel, um cheiro de iguaria, uma pitada de condimento que dê ao próprio sentimento envolvido - paixão - uma cor, um sabor, uma textura de amante.


Se as almas e corpos celebram-se (os que os têm, os pares) neste dia, mal não fica fazer da comida uma transliteração para o prato: do sabor, que deve ser perfumado, ao paladar, que deve conter açúcares os mais diversos e até mesmo a textura, da pele do(a) amante e do prato, que devem estar naquele exato ponto onde o toque final beira quase a insanidade, de tanto esforço despendido na busca do prazer (os corpos dos amantes) quanto na procura da perfeição (entre os ingredientes e o chef, tal qual dois amantes).


Pois se assim é, assim tratarei esse dia: a açúcar. O vocábulo tem origem antiga, tal qual o mundo, que se divide em doce e amargo: surgiu do sânscrito "sharkara" (grão, areia grossa). Para o português, a tradução veio do árabe "al zukkar". E, para quem não sabe, o açúcar é um tempero. Ué! O sal também é um tempero. Logo, natural que se adoce ou salgue a comida com os respectivos temperos. Obtém-se o açúcar a partir da beterraba (forma mais arcaica) e da cana-de-açúcar. A forma mais comum de açúcar é a sacarose, sólida ou cristal.


Mas há vários tipos de açúcares: glicose, frutose, galactose, manose, pentose, ribose, maltose, lactose, rafinose, amido e glicogênio. A sacarose gera várias formas de açúcares: o mascavo (ou bruto), que é algo petrificado, de uma cor que varia entre o caramelo e o marrom e é resultado da cristalização do mel-de-engenho (quase melaço); demerara, que é granulado, de cor amarela, e consiste na purgação (purificação) do mascavo; refinado granulado, que já é um produto puro, sem corantes, sem umidade ou empedramento e com cristais bem definidos, mais usado por confeiteiros; refinado amorfo, de dissolução rápida, fino e branco, para uso doméstico em bolos, confeitos e caldas; glaçúcar, ou popularmente chamado de "açúcar de confeiteiro", cujos grânulos são bem finos e cristalinos - a produção é feita diretamente nas usinas -, que tem uso mais apropriado na indústria, para fazer massas, confeitos, biscoitos e bebidas; xarope invertido, ou açúcar líquido, para frutas em calda, balas, caramelos, licores, geleias, biscoitos e bebidas; xarope simples, para bebidas, balas e doces; e açúcar orgânico, o qual a maior característica é a ausência de aditivos, o que resulta em cor clara ou dourada.


No Brasil, o ápice do ciclo da cana-de-açúcar ocorreu na época da colônia (entre os séculos XVI e XVII). Ainda assim, o País é o maior produtor e exportador mundial de açúcar de cana. Os tipos exportados são o refinado, o cristal e o demerara.


Com tanta brancura doce a nos cercar, era de se esperar que fossemos mais doces, os brasileiros, do que o somos, aparentemente. Ou então o somos, sim, mais doces do que os demais habitantes do planeta: nosso consumo médio é de 52 quilos por pessoa/ano, enquanto o resto do mundo contenta-se com 22 quilos por pessoa/ano, ou menos da metade. Será que isso explica em algum patamar sociológico a docilidade desse povo brasileiro ante tantos descalabros? Ou nossa afinidade eletiva (e nunca seletiva) com todas as demais pessoas, na média?


Portanto, que o dia lhe seja doce, cheio desse branco véu que, em aspersão, mais parece um chuvisco de neve. Em cocção, vai do branco ao dourado, com matizes os mais vários. Apega-se bem aos pratos, e não desanda a destemperar nada. Ao contrário, em situações de emergência, recomenda-se, sempre e antes de tudo, que se tome um copo d'água com açúcar.


E não há que se deixar de admirar as pessoas que fazem doces - artesanal ou profissionalmente -, pois que estão a compartilhar a doçura, sua própria e do ingrediente em si, para os outros. Uma pitada a mais e se tem aquela caldinha que desenha um vinco de sorriso; uma esfregadinha dos grãos na broa, na rosca, sobre o cural, na salada de frutas, me dá cá uma colherzinha mais para o café e tudo se adoça, se acalma.


Por desencontro entre eras tecnológicas, não presenciei o funcionamento de um engenho. Pois que se fazia açúcar bruto em casa mesmo. Cheguei a tempo de ver funcionar a máquina que faz a garapa que, em cosida, gera o melaço e daí a rapadura, da qual se diz "que é doce mas não é mole, não".

Pois que por certo são as pessoas, lá nos seus íntimos, a serem doces porém não moles, pelo menos ao primeiro contato que, depois de um esfrega aqui e uma alisadinha ali, se desmancham, sim, doces que não se adivinhavam nas cascas. Deve ser, repito, a quantidade de açúcar ingerido. Ao mais amargo dos seres lhe emergirá, em algum momento, a necessidade de reduzir o açodamento e também adocicar o fel da vida.

O jardim das delícias

sexta-feira, 5 de junho de 2009


"O Jardim das Delícias Terrenas" é um esplendoroso tríptico (três painéis), pintado por Hieronymus Bosch, que descreve a história do mundo a partir da criação na parte central (que seria o verdadeiro paraíso) e apresenta o Éden (paraíso celestial) à esquerda e o inferno à direita. Especula-se bastante a respeito da data em que as telas foram feitas e os levantamentos divergem entre 1480 a 1515. Não importa. Esse período compreende, na datação ocidental, à época mais negra e obscura da história, a Idade Média, cujas iniciativas em qualquer área eram reprimidas o bastante para que artistas ousassem sair do convencional.



Mas Bosch ousou: o centro do tríptico celebra os prazeres da carne, com símbolos e atividades em carnaval (na acepção de festa da carne), uma verdadeira celebração do amor livre em plena era de exacerbada atuação contra os excessos, sobretudo os do sexo. Me parece bastante apropriado fazer a conexão entre o "Jardim das Delícias" de Bosch com o meu próprio jardim das delícias neste blog.

Embora eu me restrinja ao reino vegetal, o jardim a que me refiro trata-se de uma luxuriosa e exuberante combinação de cores que (acho) remete ao colorido de vida de Bosch. Falo sobre as flores comestíveis que migraram dos arranjos de centro de mesa para os pratos da mesma mesa. Come-se flores. E, portanto, da vida (das flores) à vida (dos humanos), volto à diversidade provocativa de Bosch que entendeu há mais de 500 anos que a vida é feita de cor, liberdade e alegria e por que não o fazê-lo, também, por meio do alimento que se ingere?

Não sei se forcei a interação entre Bosch e as flores comestíveis mas, como gosto muito do pintor, prefiro fazer essa referência a ir beber em outra fonte, "As Flores do Mal", de Baudelaire, que não fariam justiça nenhuma às flores que alimentam, dado que são flores do bem, em oposição maniqueísta ao autor.

O consumo de flores nas refeições não é exatamente um exotismo: nos alimentamos de flores o tempo todo e, por vezes, nem nos damos conta disso. São flores, por exemplo, o brócolis, a couve-flor e alcachofra. Mas, para compor o jardim das delícias, preciso de cores, de uma paleta que comporte um espectro inteiro de cores que não se limitem ao verde do brócolis, ao branco da couve-flor e ao verde-roxo da alcachofra. Mas, cuidado: por favor, não coma as flores dos arranjos de mesa como o fez a Hebe Camargo de certa feita. Arranjos continuam a ser arranjos e as flores comestíveis serão servidas no prato, como há de ser.

E, munido dessa paleta, planto no meu jardim as mais diversas espécies:

- Amor-perfeito (Viola arvensis): as pétalas têm sabor adocicado leve e a flor completa é ligeiramente ácida.


- Boca-de-leão (Anthirrinum majus): o sabor varia entre o suave e o ligeiramente amargo e pode ser usada tanto como guarnição quanto como adorno de produções.


- Calêndula (Calendula officinalis): o sabor, algo amargo, lembra vagamente o açafrão e as pétalas dão um aspecto dourado aos pratos. O sabor é picante e a flor pode ser usada também como corante.


- Camomila (Matricaria chamomilla): bastante apreciada em chás, o inusual da camomila é que suas flores têm pétalas comestíveis com sabor idêntico ao de maçãs doces. Mas somente as pétalas são comestíveis. O pólen da flor pode causar alergias se consumido.


- Capuchinha (Tropaeolum majus): a flor tem sabor semelhante ao do agrião. É uma das flores comestíveis mais populares.


- Cravina (Dianthus chinensis): o sabor é apimentado, próximo de especiarias como o cravo-da-índia (a flor é da mesma família dos cravos). Da pétala, deve-se retirar a parte branca e amarga da base antes de consumi-la. As pétalas dessa flor são um dos ingredientes do licor francês Chartreuse, feito pelos monges da cidade de Grenoble, e cujo segredo de fabricação é mantido a sete chaves.


- Cravo túnico (Tagetes patula): com sabor levemente amargo, as pétalas das flores que têm cor amarelo-limão e tangerina são as mais procuradas.


- Gerânio (Pelargonium hortorum): o sabor varia entre o gosto do limão e da menta.


- Girassol (Helianthus annus): outro pintor, Van Gogh, encantou-se tanto com a flor que um dos seus quadros mais famosos é "Os Girassóis". Do girassol, aproveitam-se apenas as pétalas, com sabor agridoce, para consumir. Também o pólen da flor pode causar reações alérgicas.


- Petúnia (Petunia x hybrida): o sabor das pétalas é floral, suave, e a flor pode ser usada como guarnição.


- Prímula (Primula acaulis): as pétalas são de sabor suave e adocicado.


- Violeta (Viola odorata): o sabor das pétalas é doce e perfumado e podem ser consumidas tanto frescas quanto cristalizadas em açúcar.


E com essa dúzia de diferentes flores, creio que terei um dos jardins mais coloridos possíveis. À mesa, lindas, delicadas, usadas nas mais diversas produções, do doce ao salgado, do levemente ácido ao amargo, do picante ao suave. Estou ou não certo em comparar essas maravilhas com a mensagem de vida de Bosch? Se soa exagerado, quero apenas reafirmar que Bosch celebrou a vida (e não a vulgaridade). Por que não dar um colorido neste outono e fazer de conta que, pelo menos na mesa, é primavera? Você gostou do meu jardim das delícias?

Para encerrar esse cultivo que muito me agrada, posto aqui uma flor que deu o ar da graça neste outono no meu apartamento. Moro próximo da Avenida Paulista e ainda me surpreende que as plantas reajam assim, lindas, com tanta poluição e ruído ao redor. Ganhei a planta e, em apenas dois meses, a mudinha fez o círculo completo, da germinação à flor. Não sou do tipo que fala com plantas para longas sessões de análise e psicologia floral.


Confesso, entretanto, que intimamente as ameaço, as minhas plantas (tenho várias) com pronta deportação caso não produzam folhagens vistosas e ramas potentes. Essa flor que desabrochou indiferente ao ambiente que a cerca tem o formato de um cachimbo. Não sou conhecedor de plantas. Mas acho que é da família das gesneriáceas, algum tipo de gloxínia, também chamadas popularmente de cachimbo. Não sei se foram meus pensamentos maldosos mas a flor está linda. Deve ser porque nasci no dia do agricultor. E, não, essa flor não é comestível ou não estaria mais entre nós, a gozar de tanta atenção.

Oi, tum tum... bate coração, pode bater...

segunda-feira, 25 de maio de 2009


Para dias apurados, um texto leve. Se a balança pende para o lado direito, acrescente-se peso no esquerdo para equilibrar. Têm momentos que demandam essa atitude. Um contrapeso para que não haja rupturas.


Esta segunda-feira, como insistem em sê-los, os primeiros dias úteis das semanas, sobrecarregou-me de iniquidades profissionais. Nada que não consiga se administrar e, ao final do dia, encerrar tudo e colocar em estado de espera para o primeiro tilintar do telefone do dia seguinte.


Mas, é bom, quando me apetece, aspergir um pouco de orvalho sobre tão árido solo. Sem um pôr do sol decente nesta São Paulo outonal, contentei-me com o escuro de nuvens que, carregadas de presságio, anunciam, ainda para esta noite, uma convulsão nos céus. Sinal nada auspicioso para esta cidade que não convive muito bem com o intangível de, imagine!, uma chuva!


Assim que, portanto, cerraram as cortinas celestes e um espesso veludo recobriu tudo, tive iniciativas de galinhas: correr para o poleiro e me recolher ao escape do relento. O meu recolhimento não trata-se, porém, de me meter no meio de galhos velhos e ao abrigo do vento. É uma clausura que, paradoxalmente, me liberta: corri até a padaria e me empolerei ante os balcões para a colheita do dia: pão francês, pão de queijo, queijadinha, quindim, miríades doces e salgadas que me colocam feito beduíno frente ao oásis.


Em reticentes ensaios para me furtar ao convidativo ato de pedir isso, aquilo e dácáum'cadinho daquilo lá também, contritamente, me retive ao óbvio: me vê lá pão francês e aquele piteuzinho coberto de erva-doce. Em compra de suprimentos anteriores, já tinha eu me abastecido de queijo coalhado dos pequenos grãos da erva-doce. E o chá de erva-doce, bem docinho, oh!, quase um suspiro de satisfação a subir com as ondas de vapor.

Egípcia de nascimento, a erva-doce (Pimpinella anisum) parece um orvalho verde a coroar um canteiro guarnecido. Macia sob o toque, sedosa feito um cabelo tratado a babosa e óleos emulsionantes, a erva-doce refresca o duro do dia. Quebra a casca de noz que, por vezes, nos envolve em couraças de guerra, feito soldados romanos que faziam da armadura a segunda pele.


É inevitável: se suave é a noite (nem sempre), suave é a erva-doce que, se tem aroma de alvorecer, tem também a propriedade de aquietar o intrépido dia que se esvai. Doce de nascença, a erva, já o sabiam os antigos, era para beberagens, medicinais ou não. Os romanos a usavam para preparar bolos, servidos ao final dos faustosos banquetes. Para aplacar a comilança, o chá verde sempre foi recomendado. Basta ir aos chineses e ver. A Inglaterra, em priscas eras, pagava impostos para importar a erva-doce. Doces tempos para as Bretanhas.

Aqueles que têm pouca fé podem não crer, mas, outros, mais ajuizados, afirmam que a erva-doce é afrodisíaca, que é capaz, por si mesma, de promover harmonia, paz e prosperidade. De paz e prosperidade, não detenho estocagem suficiente para confirmar a teoria. Mas, uma chávena de erva-doce é, sim, eficaz para harmonizar.


A erva-doce é consumida majoritariamente em forma de chá. Porque, não sei se você concorda comigo, mas, no íntimo, credito aos chás o estranho poder de aquietar, apaziguar o ácido gosto que fica na boca depois de um, sei lá, dia com gosto de cabo de guarda-chuva?? O chá retém a propriedade de acalentar e nos dar dignidade. Uma xícara de chá fumegante aquece o corpo e aquiesce o espírito, pois não?

De qualquer forma, eu recomendo uso intensivo da erva-doce em broas de milho (hummm!!!), queijos, carnes, biscoitos, saladas, na pasta e até mesmo no arroz, por que não? Uma chuvinha de sementes, só para espantar aquelas feitiçarias pequenas que vêm travestidas de incômodas sensações de cansaço. A erva-doce é harmonia, sim. Feito uma harpa, um acalento para amargos estômagos cujos âmagos querem uma pitadinha de orvalho. E só. Para que o coração continue na cadência de sempre, sem sobressaltos ou pausas longuíssimas que nos deixam, os assustados, com cabelos mais espetados do que as folhas de erva-doce. Tum... tum... 

Aquela que se come em lugar do pão

terça-feira, 19 de maio de 2009


Escrita por Pero de Magalhães Gândavo em 1576, a "História da Província de Santa Cruz" versa sobre um Eldorado que, nos primórdios da conquista portuguesa, ainda nem Brasil era, embora lhe quisessem "vulgarmente" chamar Brasil.

Pois, entre o nome nobre e o vulgo nickname, a terra que viria ser, afinal, Brasil, despertou aos olhos do estrangeiro em discurso exclamativo que viu brotar, imperial, com raízes firmes que, como a nascente nação, se mais apegam ao chão quanto tanto a tentamos arrancar do doce solo.

E eis que o fálico símbolo enraizado que faz brotar das profundas o caule aparentemente frágil e se põe em pé, feito soldado de territórios guardião, em fileiras simétricas, embora não compostas pela mão racional europeia que chegava.

Era a primeira impressão. E se primeira é a impressão que fica, ficou tal que a mandioca marcou indelevelmente que a terra era nostra, de raiz e de propriedade, dos ancestrais índios, selvagens primitivos a pintar o corpo por qualquer dá cá aquela palha.

E assim que marco ficou da gastronomia brasileira a mandioca a primeira. A merecer loas em arcaico português quinhentista e a tingir em papel timbrado da Coroa o primeiro registro do nativo fruto da terra. A mandioca indígena, pois, alçada à condição, enfim, de ingrediente.

E com esse texto em hieróglifos rebuscados, resgato a história da mandioca. Ainda que o texto antigo seja, não lhe é o sentido. Como verás, se bravo(a) for, leitor(a) meu(minha), a decifrar o pergaminho que descansa nos anais lá do lado de lá do Atlântico:


"São tantas e tam diversas as plantas, fruitas, e hervas que ha nesta Provincia, de que se podiam notar muitas particularidades, que seria cousa infinita escreve-las aqui todas, e dar noticia dos effectos de cada huma meudamente. E por isso nem farei agora mençam sinam de algumas em particular, principalmente daquellas de cuja virtude e fruito Participão os Portuguezes.

Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós: quando a querem plantar em alguma roça cortão-na e fazem-na em pedacos, os quaes metem debaixo da terra, depois de cultivada, como estacas, e dahi tornaõ arrebentar outras plantas de novo: e cada estaca destas cria tres ou quatro raizes e dahi pera cima (segundo a virtude da terra em que se planta) as quaes põem nove ou dez meses em se criar: salvo em Sam Vicente que põem tres annos por causa da terra ser mais fria.

Estas raizes a cabo deste tempo se fazem mui grandes á maneira de Inhames de S. Thomé, ainda que as mais dellas sam compridas e revoltas de feição de corno de boi. E depois de criadas desta maneira si logo as nam querem arrancar pera comer, cortam-lhe a planta pelo pé, e assi estão estas raizes cinco, seis meses debaixo da terra em sua perfeicão sem se danarem: e em Sam Vicente se conservam vinte, e trinta annos da mesma maneira. E tanto que as arrancão põem-na a curtir em agoa três quatro dias, e depois de curtidas, pizão-nas muito bem.

Feito isto metem aquella massa em humas mangas compridas e estreitas que fazem de humas vergas delgadas, tecidas á maneira de cesto: e ali a espremem daquelle súmo da maneira que nam fique delle nenhuma cousa por esgotar: porque he tam peçonhento e em tanto extremo venenoso, que si huma pessoa ou qualquer outro animal o beber, logo naquelle instante morrerá.

E depois de assi a terem curada desta maneira põem hum alguidar sobre o fogo em que a lanção, a qual está mexendo huma India até que o mesmo fogo lhe acabe de gastar aquella humidade e fique enxuta e disposta pera se poder comer que será por espaço de meia hora pouco mais ou menos.

Este he o mantimento a que chamão farinha de páo, com que os moradores e gentio desta Provincia se mantém. Ha todavia farinha de duas maneiras: huma se chama de guerra e outra fresca. A de guerra se faz desta mesma raiz, e depois de feita fica muito seca e torrada de maneira que dura mais de hum anno sem se danar. A fresca he mais mimosa e de melhor gosto: mas nam dura mais que dous ou tres dias, e como passa delles, logo se corrompe. Desta mesma mandioca, fazem outra maneira de mantimentos que se chamão beijús, os quaes sam de feição de obreas, mas mais grossos e alvos, e alguns delles estendidos da feição de filhós. Destes uzam muito os moradores da terra, principalmente os da Bahia de Todos os Santos, porque são mais saborosos e de melhor disistão que a farinha.

Tambem ha outra casta de mandioca que tem differente propriedade desta, a que por outro nome chamão aipim, da qual fazem huns bôlos em algumas Capitanias que parecem no sabor que excedem a pão fresco deste Reino. O sumo desta raiz nam he peçonhento como o que sae da outra, nem faz mal a nenhuma cousa ainda que se beba. Tambem se come a mesma raiz assada como batata ou inhame: porque de toda maneira se acha nella mu ito gosto. Além deste mantimento, ha na terra muito milho zaburro de que se faz pão muito alvo, e muito arroz, e muitas favas de differentes castas, e outros muitos legumes que abastão muito a terra.

Huma planta se da támbem nesta Provincia, que foi da ilha de Sam Thomé, com a fruita da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta he mui tenra e nam muito alta, nam tem ramos senam humas folhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita della se chama bananas. Parecem-se na feição com pepinos, e crião-se em cachos: alguns delles ha tam grandes que tem de cento e cincoenta bananas pera cima, e muitas vezes he tamanho o peso della que acontece quebrar a planta pelo meio. Como são de vez colhem estes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. Depois de colhidos cortão esta planta porque nam frutifica mais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer della huns filhos que brotam do mesmo pé, de se fazem outros semelhantes.

Esta fruita he mui sabrosa, e das boas, que ha na terra: tem huma pelle como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lanção fora quando a querem comer: mas faz dano á saude e causa fevre a quem se desmanda nella. Humas arvores ha tambem nestas partes mui altas a que chamão Zabucáes: nas quaes se criam huns vasos tamanhos como grandes cocos, quasi da feição de jarras da India. Estes vasos são mui duros em gram maneira, e estão cheios de humas castanhas muito doces, e saborosas em extremo: e tem as bocas pera baixo cubertas com humas sapadoiras que parece realmente nam serem assi criadas da natureza, senam feitas por artificio de industria humana.

E tanto que as taes castanhas são maduras caem estas sapadoiras e dali começam as mesmas castanhas tambem a cahir pouco a pouco, até nam ficar nenhuma dentro dos vasos.

Outra fruita ha nesta terra muito melhor, e mais prezada dos moradores de todas, que se cria em huma planta humilde junto do chão: a qual planta tem humas pencas como de herva babosa.

A esta fruita chamão Ananazes, e nascem como alcachofres, os quaes parecem naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho, e alguns maiores. Depois que são maduros, tem hum cheiro mui suave e comem-se aparados feitos em talhadas. São tam sabrosos, que a juizo de todos nam ha fruita neste Reino que no gosto lhes faça vantagem, e assi fazem os moradores por elles mais, e os tem em maior estima que outro nenhum pomo que haja na terra.

Ha outra fruita que nasce pelo mato em humas arvores tamanhas como pereiras, ou macieiras: a qual he de feição de peros repinaldos, e muito amarella. A esta fruita chamão cajús: tem muito sumo, e come-se pela calma pera refrescar, porque he ella de sua natureza muito fria, e de maravilha faz mal, ainda que se desmandem nella. Na ponta de cada pomo destes se cria hum caroço tamanho como castanha, da feição de fava: o qual nasce primeiro, e vem diante da mesma fruita como flôr; a casca delle he muito amargosa em extremo, e o meolo assado he muito quente de sua propriedade e mais gostoso que a amendoa.

Outras muitas fruitas ha nesta Provincia de diversas qualidades comuns a todos, e são tantas que já se acharão pela terra dentro algumas pessoas as quaes se sustentavão com ellas muitos dias sem outro mantimento algum. Estas que aqui escrevo, são as que os portuguezes têm entre si em mais estima, e as melhores da terra.

Algumas deste Reino se dão tambem nestas partes, convem a saber, muitos melões, pepinos, romãs e figos de muitas castas; muitas parreiras que dão uvas duas, tres vezes no anno, e de toda outra fruita da terra ha sempre a mesma abundancia por causa de não haver la (como digo) frios, que lhes fação nenhum prijuizo. De cidras, limões, e laranjas ha muita infinidade, porque se dão muito na terra estas arvores de espinho, e multiplicão mais que as outras.

Além das plantas que produzem de si estas fruitas, e mantimentos que na terra se comem, ha outras de que os moradores fazem suas fazendas, convém a saber, muitas canas de açucar, e algodoaes, que he a principal fazenda que ha nestas partes, de que todos se ajudão e fazem muito proveito em cada huma destas Capitanias, especialmente na de Pernambuco que são feitos perto de trinta engenhos, e na Bahia do Salvador quasi outros tantos, donde se tira cada hum anno grande quantidade de açucares, e se dá infinito algodam, e mais sem comparaçam que em nenhumas das outras. Tambem ha muito páo brasil nestas Capitanias de que os mesmos moradores alcanção grande proveito: o qual páo se mostra claro ser produzido da quentura do Sol, e criado com a influencia de seus raios, porque nam se acha sinam debaixo da torrida Zona, e assi quando mais perto está da linha Equinocial, tanto he mais fino e de melhor tinta; e esta he a causa porque o nam ha na Capitania de Sam Vicente nem dahi pera o Sul.

Hum certo genero de arvores ha tambem pelo mato dentro na Capitania de Pernambuco a que chamam Copahibas de que se tira balsamo mui salutifero e proveitoso em extremo, para enfermidades de muitas maneiras, principalmente as que procedem da frialdade: causa grandes effeitos, e tira todas as dores por graves que sejam em muito breve espaço. Pera feridas ou quaesquer outras chagas, tem a mesma virtude, as quaes tanto que com elle lhe acodem, sáram mui depressa, e tira os signaes de maneira, que de maravilha se enxerga onde estiverão e nisto faz vantagem a todas as outras medicinas.

Este oleo nam se acha todo o anno perfeitamente nestas arvores, nem procuram ir busca-lo senam no estio que he o tempo em que asinaladamente o criam. E quando querem tira-lo dão certos golpes ou furos no tronco dellas pelos quaes pouco a pouco estão estilando do amago este licor precioso. Porém nam se acha em todas estas arvores sinam em algumas a que por este respeito dão o nome de femea, e as outras que carecem delle chamão machos, e nisto sómente se conhece a differença destes dous generos, que na proporçam e semelhança nam differe nada humas das outras. As mais dellas se achão roçadas dos animaes, que por instinto natural quando se sentem feridos ou mordidos de alguma fera as vão buscar pera remedio de suas enfermidades.

Outras arvores differentes destas ha na Capitania dos llhéos, e na do Spirito Santo a que chamão Caborahibas, de que tambem se tira outro balsamo: o qual sae da casca da mesma arvore, e cheira suavissimamente. Tambem aproveita para as mesmas enfermidades, e aquelles que o alcanção tem-no em grande estima e vendem-no por muito preço, porque além de as taes arvores serem poucas correm muito risco as pessoas que o vão buscar, por causa dos inimigos que andam sempre naquella parte emboscados pelo mato e não perdoão a quantos achão.

Tambem ha huma certa arvore na Capitania de Sam Vicente, que se diz pela lingoa dos lndios "Obirá paramaçaci", que quer dizer páo para enfermidades: com o leite da qual sómente com tres gotas, purga huma pessoa por baixo e por cima grandemente. E si tomar quantidade de huma casca de noz, morrerá sem nenhuma remissam. De outras plantas e hervas que nam dão fruito nem se sabe o pera que prestam, se podia escrever, de que aqui nam faço mençam, porque meu intento nam foy sinam dar noticia (como já disse) destas de cujo fruito se aproveitão os moradores da terra. Somente tratarei de huma mui notavel, cuja qualidade sabida creio que em toda parte causará grande espanto.

Chama-se herva viva, e tem alguma semelhança de silvam macho. Quando alguem lhe toca com as mãos, ou com qualquer outra cousa que seja, naquelle momento se encolhe e murcha de maneira que parece criatura sensitiva que se anoja, e recebe escandalo com aquelle tocamento. E depois que assossega, como cousa já esquecida deste agravo, torna logo pouco a pouco a estender-se até ficar outra vez tam robusta e verde como dantes. Esta planta deve ter alguma virtude mui grande, a nós enconberta, cujo effeto nam será pela ventura de menos admiraçam. Porque sabemos de todas as hervas que Deos criou, ter cada huma particular virtude com que fizessem diversas operações naquellas cousas pera cuja utilidade foram criadas e quanto mais esta a que a natureza nisto tanto quiz assinalar dando-lhe hum tam estranho ser e differente de todas as outras."

The book is under the table

sábado, 16 de maio de 2009

Das cozinhas mundiais, duas se sobressaem quando se trata de combinar comida e saúde: a japonesa, considerada a comida mais saudável do mundo, e a mediterrânea, tida como a segunda cozinha mais saudável.


A cozinha mediterrânica sempre exerceu um forte apelo sobre mim: sou adepto do azeite, dos encorpados cozidos, dos frutos do mar e das sobremesas cheias de manha e de carboidratos. Se pudesse, minha comida seria regada a azeite, todos os dias, com saladas entremeadas de frutos do mar, sopas leves e cozidos para aquecer o corpo e a alma.

O mar Mediterrâneo banha alguns países da Europa e chega até mesmo perto do Oriente Médio e da África. Rota comercial ativa dos fenícios, egípcios, cartagineses, persas e romanos, o Mediterrâneo agregou nas respectivas costas todas as influências desses povos, extremamente presentes nas cozinhas atuais.

Assim, numa região geográfica que passa pela Espanha e se estende por Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, Israel, Líbano, Síria, Turquia, Grécia, Itália e sul da França, tudo pode ser considerado mediterrânico. Na verdade, não existe uma cozinha mediterrânea por definição, e sim a combinação de milhares de ingredientes que formam o caldo mediterrâneo.

Os ingredientes típicos são os vegetais (tomate, beringela, pimenta, alho), sementes comestíveis e cereais, massas, ervas frescas (as mais usadas no mundo provêm dessa região), especiarias, azeite e azeitona, e, claro, a fonte abundante dos mais diversos frutos do mar e peixes de água salgada. Por conta das regiões montanhosas que formam as terras à beira do Mediterrâneo, a carne vermelha é mais rara do que em regiões de extensas pastagens como o Brasil e Argentina, por exemplo.

A obra "O Livro Essencial da Cozinha Mediterrânica" - editora Paisagem - 304 páginas, traz uma série de receitas dessas regiões banhadas pelo bonito mar Mediterrâneo. De forma que, esteja você em Barcelona, na Espanha, ou em Rabat, capital do Marrocos, experimentará, num desses lugares, o que se convenciona a chamar de "cozinha mediterrânea". De um ponto a outro, sejam os pescados da Cataluña ou o cuscuz marroquino, esse pequeno pedaço do mundo recortado pelo Mediterrâneo conecta-se intimamente por um fio invisível que une os diferentes povos numa base de cozinha única.

O livro faz parte de uma série da editora Paisagem, chamada de "O Livro Essencial", sobre a qual já tive o prazer de comentar neste blog antes em passeio pela cozinha asiática. A riqueza do Mediterrâneo pode ser apenas vislumbrada nas páginas do livro, já que o manancial mediterrâneo de receitas de toda a região é tão extenso quanto o mar que a banha.

(P.S. Sabe do que eu gosto? De vitamina de abacate batida com leite e açúcar. O abacate é uma das frutas mais ricas em gordura e proteína e 100 gramas da fruta equivalem a 162 calorias. Ainda assim, me apego ao abacate tal qual o caroço se lhe apega: com fervor de pertencimento. Por que eu simplesmente não me satisfaço com uma pera, já que 100 gramas dessa fruta equivalem a apenas 56 calorias? Por quê?)