Em defesa do reinado do marajá brasileiro

terça-feira, 7 de julho de 2009


Gasta pelo uso político fundado na era Collor, a palavra 'marajá' nos causa, a nós brasileiros, de imediato, repulsa. O termo foi apropriado nos anos 90 no Brasil para definir a casta de políticos e respectivos apadrinhados mantidos em empregos-fantasmas. Assim, esses 'marajás' brasileiros eram funcionários públicos regiamente pagos com altos salários e, na prática, não exerciam função alguma.

O Brasil, ainda que não tenha um sistema de castas aos moldes da Índia, incorporou muito bem ao menos esse escalão, os dos maha-rajá, que tinham, sim, pequenos feudos sobre os quais agiam conforme os correspondentes marajás indianos: com mandos e desmandos e muito poder regado a dinheiro público. Houve, ao final do marajonato de Collor, uma verdadeira caça aos marajás brasileiros e, embora a limpeza tenha sido bastante eficiente, restam uns e outros à margem de Ganges tropicais imaginários, prontos para reassumir igualmente fantasiosos reinados. Há que se manter vigília permanente, portanto, para que esses reis não retomem cepos, tronos e coroas e venham a triunfar em desfiles tão flagrantes quanto elefantes em procissão na Ásia.

Por conta da má fama, a palavra 'marajá' é precedida, portanto, de preâmbulos como esse que acabei de descrever acima. Causa azia e ânsia mal contida nos estômagos um tanto quanto sensíveis das pessoas que viveram aquela era peculiar com predominância de entes estranhos ao paladar nacional como marajás, oriundos de tão distantes reinos que o eram os autênticos indianos.

Bem, essa preleção toda é para que fique registrado na memória que há, pelo menos, um marajá legítimo, de raiz brasileira, e que nada tem que ver com reinos, Índia e muito menos com comportamentos políticos que merecem fogueira em praça pública.


Marajá é o nome de um fruto do marajazeiro, uma palmeira nativa da Amazônia. O marajá (Pyrenoglyphis maruja) brasileiro tem o tamanho de uma azeitona e o formato de um côco, cujas cascas podem ser roxas ou pretas. A polpa é branca e pode tender também para o rosa, com leve sabor que transita entre o adocicado e o azedo.

Popularmente, a árvore marajazeiro é conhecida como palmeira-marajá e o produto principal do fruto é o licor de Marajá, assim, grafado em maiúscula para designar, de forma respeitosa, um fruto nativo das matas amazônicas, e mais especificamente encontrado nas extensões da floresta que chega ao Pará.

A palmeira é silvestre e desenvolve-se bem em terrenos alagados, às margens dos rios e igarapés da Amazônia. Tanto que é comum encontrar a árvore e o fruto nas vias fluviais da região. E, claro, a planta é bastante comum na ilha de Marajó que tem exatamente as condições geológicas requeridas para o desenvolvimento da palmeira. A fruta pode ser consumida in natura e dela se produz também um líquido que é quase vinho e pode ser vinagre.


De forma que se tem, em território brasileiro, um legítimo marajá. Que, ao contrário dos correlatos brasilienses que germinaram em todo o solo pátrio, estão restritos à região amazônica, preferencialmente em vastas e alagadas superfícies. Que, também em oposição ao marajonato de classe baixa na casta da escala sócio-política, não são amargos, e sim adocicados. Não são contraproducentes, e sim bastante aproveitáveis - fruto, casca, folhas, tronco. Que, embora pequeno em dimensões, o fruto marajá resgata a palavra do limbo a que foi submetida por tão mal afamada circunstância e a recoloca nas alturas, entre 6 e 8 metros, que é o quão alta pode ser uma palmeira-marajá.

Proclame-se, portanto, que os marajás brasileiros são esses, frutos da terra, e não aqueles, frutos da cobiça. São esses, conhecidos desde sempre pelos índios, e não aqueles, herdados do jugo indiano. São esses os pequenos marajás cujas sementes serviam de adorno aos indígenas e o servem ainda aos nativos, e não aqueles outros, adornados de falsos brilhantes. Não temamos, mais, pois, fazer bom uso da palavra 'marajá'. Que esse uso, cedido pela natureza, não corrompe. Ao contrário, rompe com aquele outro, falso desde a raiz.

O marco doce da minha infância

quinta-feira, 2 de julho de 2009


Por uma defasagem orgânica ou, é fato, por gula nata, sou, desde pequeno, voraz consumidor de pratos doces. Tenho, com sobremesas, guloseimas e cremes, muitos cremes, uma verdadeira relação carnal, primitiva, do tipo que se esfalfa em prazer gutural e glutão ao antever o prato e experimentá-lo, primeiro, com a fome dos olhos e, depois, apaziguar a expectativa com o palato.

Das primeiras sensações doces da minha vida claro está que não as guardo de cabeça. E muito menos na memória gustativa. Mas, em determinado momento, um prato, em particular, fincou pé no meu estômago e fez dali um marco de antes e depois. Foi o pudim.


Creio que os meus primeiros pudins eram de leite ou de pão. Quem sabe disso é a minha mãe. Recordo, vagamente, de pudins assados em banho-maria no forno do fogão a lenha (e quem me trouxe o registro de lá de trás foi o leitor Klaus, que ficou ensimesmado com o fogão a lenha de outras eras). Que, dourados com a calda de açúcar caramelizado, mal podiam esfriar e eu já estava a lhes brindar com ataques de soldados a paliçadas mal guarnecidas.

Entre a primeira e a quarta série primária, estudei no sítio em que nasci e, graças à originalidade daquela época (e me pergunto por que apenas a época de cada um de nós é original e as outras, as demais, são apenas falsificações grosseiras?), conduzida pela professora (sim, da rede pública), de tempos em tempos fazíamos uma espécie de escambo na escola (que está lá ainda, degradada agora) pelo qual cada aluno trazia de casa um prato.


Minha mãe costumava fazer bolos para essas ocasiões - os quais, confesso, desprezava - e, dada a possibilidade altamente promissora de troca, eu avançava nos pudins alheios que as mães dos colegas enviavam. Sempre fui muito guloso, sim.

Para completar o ciclo do pudim na minha infância, minha avó materna sempre os fazia, os pudins. Lindos, pareciam envernizados de tão brilhantes. Invariavelmente massudos, com sustância em si mesmo a desmerecer os pudins industrializados (argh!) e os instantâneos pelos quais basta um liquidificador e um forno de micro-ondas e lá vem o prato, pobre de espírito, de mão na massa e feito para ser consumido como foi produzido: num glup! e já era! Cadê o prazer e o gosto?


Tenho uma receita preciosa de um senhor da minha cidade que considero um dos melhores pudins. Esse senhor era o doceiro oficial, posso dizer. E fazia os melhores doces da cidade. Deixou como herança o talento para a cozinha para as filhas: uma foi minha tia e a outra é uma das boleiras oficiais da minha cidade, com produções que não ficam nada a dever aos bolos de São Paulo. E afirmo isso sem me vangloriar: é apenas fato.

Os pudins são originários de Portugal. Muito ovo, farinha de trigo, açúcar e o ingrediente que varia conforme a receita: leite, pão, queijo, laranja. Há os modernos, que usam produtos industriais como o leite condensado e o leite em pó. Ainda fico com os antigos. No Brasil, acostumado desde os primórdios a praticar a miscigenação, também os pudins se amorenaram: incorporaram o côco, a mandioca, as claras (de sobras de quindim e de ambrosia, que usam apenas as gemas).


Pudim que se preza se faz em banho-maria. Não sei como o fazem em padarias. Mas, quando arrastado pela fatia amarelada coberta de caramelo das vitrines das padarias, nunca encontro o sabor (que se me gravou, este sim, na memória gustativa) familiar, daquele feito no fogão a lenha e, depois, no forno a gás. Quando os faço, sou rigorosamente adepto do velho método.

O engraçado é que o pudim, na Grã-Bretnha, é pudding, e é salgado. O famoso Pudim de Yorkshire, por exemplo, é feito de farinha de trigo e de sangue. E outros feitos de rins e de filés, servidos como prato principal numa refeição. São diferenças culturais. Claro, os há doces, como o pudim de ameixa inglês.


Mas, no caso brasileiro e português, pudim é sobremesa, doce a perder de vista, imerso em calda e gemas, uma verdadeira massa de veleidades que tornam infrutíferas quaisquer tentativas de pudores gastronômicos, se é que comida e pudor podem se postar no mesmo andor.

O que sei dos pudins é que deles nunca enjoei. Longe de mim tal desfeita. Que os conheci em pequeno, feitos em fogões a lenha, com longo período de cozimento na calmaria do banho-maria. Lento o forno, apressado o meu apetite, quando se encontravam, pudim e boca, era um reconforto, um farfalhar de massa nunca tão mole e tampouco dura que, aos poucos (ou não, conforme a falta de recato), dissolvia-se à larga na boca, a festejar o comensal com prazer inexorável ao cometer um daqueles que é chamado de pecado capital. Pois que eu o cometo, contritamente, sem o menor vestígio de estar falto com algo e, claro, disposto a arcar pela falta de remissão. Que, fique explícito, não a busco, a remissão. Não no pudim.