Mão de vaca

terça-feira, 31 de março de 2009


Ter tutano equivale a dizer que você tem força, sustância, garra. Que você, em expressão gasta, é um(a) guerreiro(a). Se você tem essa energia toda, pode sair por aí e proclamar: "sou guerreiro(a), modelo e ator(atriz)!". Tá! É meio exagero. Mas, tutano é, sobretudo, vitalidade.

Tutano também é a medula dos ossos, uma substância gelatinosa, mole e cheia de gordura que existe nos ossos das patas dos animais. Do tutano se faz o mais legítimo mocotó (do tupi-guarani mbo-coto) ou do português de Portugal mão-de-vaca.


O mocotó é um prato bastante tradicional. Foi criado pelo pelos escravos principalmente por causa dos sucos dos ingredientes, ricos e nutritivos. Claro que a alimentação dos escravos era precária. Por isso, precisavam enriquecê-la com outros ingredientes, desprezados pelos brancos. O mesmo processo ocorreu com a criação da feijoada.


A origem do mocotó data do século XIX. Quando se fazia a carne de charque, os escravos retiravam para si as partes do boi (ou da vaca, que eu tinha uma) desprezadas - as patas, o úbere, a tripa grossa e quase todos os demais pedaços. Os escravos limpavam essas partes consideradas 'restos' (na Europa, servem de base para pratos finos), deixavam no fogo por muito tempo e, quando voltavam para a senzala, o cozido estava pronto.


(O tutano em carne e osso, literalmente)

O resultado desse preparo não passou desapercebido pelos senhores das fazendas. Ao verem que os escravos renovavam seus 'tutanos' com o tutano bovino, também incluíram o mocotó nas suas refeições. Mas, claro, adicionaram ingredientes mais 'nobres' como a linguiça, o feijão branco, ovos, cheiro-verde (salsa e cebolinha) e mais alguns. O mocotó é nome de um restaurante bastante apreciado em São Paulo e também um prato de inverno, que 'esquenta' e fornece calorias. Em todo o País, consome-se o caldo de mocotó ou a geleia de mocotó (doce).

A folha Peter Pan

segunda-feira, 30 de março de 2009


A pupunheira (Bactris gasipaes) é uma palmeira nativa da região Amazônica e tanto a fruta quanto o palmito dessa planta podem ser consumidos. Domesticada desde as civilizações pré-colombianas, cresce rapidamente e pode atingir mais de 20 metros de altura, o que lhe garante um vistoso destaque em jardins ornamentais.


Na Amazônia, o povo da região costuma comer os frutos da pupunha cozidos em água e sal. Além da planta nativa, há plantações de cunho comercial nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. O palmito é bastante procurado e se forma por dentro das folhas mais jovens.


Cerca de 95% da produção de palmito, no entanto, veem de outra palmeira, o açaizeiro, também natural da região. Outra espécie, a juçara, que também fornece palmito, é nativa da Mata Atlântica e, por conta do corte indiscriminado - para se obter o palmito é necessário derrubar o pé de palmeira -, essa palmeira está bastante reduzida. É o equivalente à caça de marfim na África: para se obter o marfim, abate-se o elefante.


A palmeira juçara está entre as espécies consideradas extintas, assim como o açaí. A pupunha é da mesma família da carnaúba, do babaçu e do açaí. O fruto da pupunha, cozido, apresenta consistência de batata doce e um leve aroma de milho verde.


O palmito, que, por definição, é uma folha que não se desenvolveu por completo - talvez tenha medo de ser adulta, como Peter Pan -, tem um processo delicado de crescimento: fica enrolado dentro do caule da palmeira, em camadas, até que a natureza o faça emergir. Ao contrário das palmeiras juçara e açaí, a vantagem da pupunheira é que, depois de extraído o palmito, a pupunheira se regenera e brota novamente, em processo semelhante ao de bananeiras. Com isso, ganha força a cultura da pupunheira como opção de fornecimento de palmito sem que se tenha que por abaixo a palmeira.


O palmito pupunha forma, na cozinha, composição com variedade extensa de pratos: de acompanhamento de saladas a carpaccios de palmito, é um ingrediente que combina a delicadeza e um ligeiro sabor acre com peixes, carnes, massas, arroz, grelhados. Ótimo para decorar e arrematar produções simples ou elaboradas.


Mas, cuidado! É bom ficar atento: um palmito enlatado, vendido sem condições higiênicas obrigatórias, é altamente perigoso e pode causar botulismo, ativado por uma bactéria que, em casos extremos, pode levar à morte. Acho que é uma espécie de vingança da árvore, de uma certa forma: já que você me derrubou, por que vai me estragar? Tem um certo sentido nisso, não?

Vintage

domingo, 29 de março de 2009


Catupiry, em tupi-guarani, significa "excelente". De tão popular, transformou-se em sinônimo de requeijão cremoso. Mas, Catupiry não é um tipo de queijo, e sim uma marca, devidamente registrada. Daqui a dois anos, o requeijão Catupiry comemorará seu centenário. A empresa que o fabrica foi fundada em 1911, por Mário Silvestrini, imigrante italiano que aportou da Itália para a estância hidromineral de Lambari, em Minas Gerais.

O Catupiry é consumido in natura e é ingrediente de uma infinidade de receitas. Centenas de tipos de pizzas levam a palavra "catupiri" em sua composição. Mas, catupiri é o genérico do queijo cremoso e, em quase todos os casos, não tem nenhuma relação com o gosto, a textura e a suavidade do legítimo Catupiry. O catupiri genérico, algumas vezes, chega a ser feito com farinha de trigo (argh!), ao passo que o Catupiry, como todos os bons produtos, mantém segredo de sua receita. Tudo o que se sabe do Catupiry é que é um queijo processado como requeijão cremoso. E só.

Esse requeijão único brasileiro é classificado como "Marca Notória": não pode ser reproduzido, imitado ou usado indevidamente. Claro que, com a ineficiência da fiscalização brasileira, o Catupiry não escapa à pirataria e versões vulgares do produto podem ser encontradas no mercado.

No início, o Catupiry era consumido puro, com pães, torradas e como sobremesa (existe até Doce de Catupiry). Depois, começou a ser usado de forma doméstica e por chefs para compor outras receitas, como a Pizza de Catupiry. Não é difícil encontrar pratos em restaurantes - massas, peixes e aves - que levam o apêndice "Ao Catupiry".

A matriz do Catupiry fica localizada na cidade de São Paulo e existem mais quatro unidades em todo o Brasil, com 1.500 produtores de leite exclusivos que fornecem o ingrediente para fazer o requeijão cremoso: são mais de 200 mil litros de leite por dia.

A técnica de fabricação do Catupiry é mantida em segredo desde 1911. Basicamente, o queijo processado é composto de leite fresco, creme de leite, fermento lácteo, massa coalhada e sal.

O tradicional formato da embalagem, que já foi de madeira e agora é de polipropileno, homenageia o terroir queijo de minas, típico do Estado mineiro e do Brasil. Se você não conhece o Catupiry e anda a experimentar catupiris genéricos, teste o legítimo: nunca mais vai querer saber dos demais, puras imitações. Eu defendo bastante os produtos legítimos porque a qualidade é impecável e o sabor é único. Senão, de que vale termos produtos desse nível em terra brasileira e não lhe darmos o devido valor?

The book is under the table

sábado, 28 de março de 2009


Um blog, um livro e de novo ao blog. Em 2002, a norte-americana Julie Powell se colocou um desafio: fazer as 524 receitas do livro "Mastering the Art of French Cook", de Julia Child, que é o nosso equivalente "Dona Benta" nos EUA. Claro que "Dona Benta" é mais simples, mas a referência é fundamental. Durante um ano, Julie fez todos os pratos de Julia na pequena cozinha do apartamento no Queens, em Nova York, e postou quase que diariamente as experiências no blog.


O projeto foi chamado de "Julie/Julia Project" e rendeu um livro - "Julie e Julia" - Conrad - 312 páginas -, que será transformado em filme também. No meu outro blog, o Por uma Second Life menos ordinária, reproduzi experiência semelhante ao postar as mais de 160 aulas durante o segundo ano inteiro da faculdade de gastronomia que concluí no ano passado.

O livro é tão atrativo quanto o blog. Eu, como blogueiro e leitor ávido, recomendo a leitura dessa obra. Para mim, fica claro que qualquer projeto torna-se viável na medida em que você decide levá-lo adiante. Escrevi acima um blog, um livro e de novo ao blog. É sobre o círculo que se fecha: a blogueira e cozinheira norte-americana começou com um blog, publicou o blog em livro e eu os retomo (ao blog e ao livro) de novo aqui em um blog.

É como o processo de cozinhar: começa com o ingrediente plantado pela mão do homem, vai à cozinha, transforma-se, por alguns processos, em um elaborado prato e volta ao homem. 

Cozinhar, blogar, escrever. Três atos de amor. De compartilhamento e de dar ao outro a possibilidade do convívio de corpo e alma, de certa forma.

Pomo de ouro

sexta-feira, 27 de março de 2009


Muitos o classificam, de forma leiga, como legume. Mas não é. E não deveria ser mesmo: tem cara, cor e jeito de fruta. E olha só: é parente das berinjelas, das pimentas e dos pimentões.


Típico das Américas do Sul e Central, já era alimento essencial no prato das civilizações pré-colombianas. Não à toa, o nome vem do povo asteca - tomatl. Sim, é aquele que, na Itália, tem um poético nome de "pomo d'oro" - pomo de ouro.


No Peru, era cultivado pelos incas. Naquele país ainda existem tomates selvagens e variedades verdes únicas. Antes que a Europa colonizasse o Novo Continente, o Velho Mundo desconhecia o tomate (e também o milho, alguns tipos de feijão, as batatas, o abacate e o cacau). O que significa dizer que o Velho Mundo, além de nos colonizar, ainda levou daqui produtos terroir que, hoje, se confundem com a Europa (como o tomate na Itália e a batata na Inglaterra).


E outra curiosidade: os europeus o tinham, o tomate, por venenoso, e o usavam apenas como ornamento. Bobos! Somente muito tempo depois de o conhecerem, no século XIX, é que passaram a usá-lo na gastronomia. Primeiro, na Itália. Depois, França e Espanha e daí para toda a Europa cultivável.


Os tomates, para efeito de classificação, dividem-se conforme o formato e a finalidade de uso:


- Santa Cruz: de uso culinário, para saladas e molhos, tem formato oblongo;

- Caqui: um dos mais populares no Brasil, é utilizado para saladas e lanches.

- Italiano: maior uso em molhos, mas também para saladas. Formato alongado.

- Cereja: é um minitomate e, portanto, pode ser servido como aperitivo ou mesmo em saladas. Pode ser redondo ou alongado e tem várias espécies.


Tradicionalmente, o tomate é reconhecido pela cor vermelha. No entanto, há variedades naturais ou modificadas que podem ser rosadas, amarelas e alaranjadas. E há os de cor verde (não por falta de maturidade, claro), encontrados apenas no Peru.


O uso gastronômico é imenso em todo o mundo: usa-se o tomate para um sem-fim de pratos. In natura, como molho, assado, frito (lembra de "Tomates Verdes Fritos"?), em conserva, com carne, frango, pasta, peixes etc. Não há limites para a "maçã de ouro".


Aliás, a maçã ganhou fama ao figurar na Bíblia como o "fruto do pecado". Pois eu acho que o ilustrador que estava lá para contar a história para nós se enganou: era um tomate, e não uma maçã, que Eva ofereceu a Adão. Porque sim. Explico: maçãs são algo insossas e dificilmente deixam escorrer aquele suco comum ao tomate (sugo). Pois que esse suco se presta muito mais à tentação do que aquele pequeno filete que a maçã depreende ao ser mordida. Concorda?


A árvore da vida

quinta-feira, 26 de março de 2009


Hoje, 26 de março, comemora-se o dia desse fruto, nomeado lá nos meados de 1700 como o "manjar dos deuses". Para os índios, as sementes do fruto eram tão valiosas quanto o próprio fruto e convertiam-se em moedas. Um dos lendários imperadores do passado, daqueles sobre os quais lemos nos livros de História, Montezuma, recebia sementes como tributo dos súditos.


A colonização espanhola da América Central e Latina encontrou uma cultura plena quando chegou: no México e na América Central, respectivamente, astecas e maias conheciam e usavam o cacau. O cacaureiro (Theobroma cacao), chamado de cacahualt por esses povos, era considerado sagrado, por ser acreditado como de origem divina.


O cacaueiro é uma árvore cuja origem encontra-se nas florestas americanas. Ainda é possível, em países que vão do Peru ao México, se deparar com a árvore em estado silvestre. Credita-se a sua ocorrência natural às cabeceiras do rio Amazonas, a partir do qual disseminou-se em duas espécies distintas.


Uma é o Criolloe Forastero, que vai da América Central ao México, e caracteriza-se pelos frutos grandes, com superfície enrugada. As sementes são brancas, com interior branco ou violeta pálido. Esse era o tipo de cacau cultivado e cultuado pelos maias e astecas. O Forastero é a outra espécie, que se estende da Bacia Amazônica até as Guianas. É considerado o cacau brasileiro legítimo, com frutos ovais, superfície lisa e com sementes de cor violeta escura ou quase preta.


Na Bahia, que atualmente é o maior estado produtor brasileiro, o cacau chegou apenas no século XVIII, que o exportou para a África. Registros antigos esclarecem que o cultivo oficial do cacau no Brasil teve início em 1679, por determinação de Carta Régia. Inicialmente, foram feitas tentativas de plantio no Pará. E, somente em 1746, sementes da espécie Forastero foram levadas para a Bahia. Hoje, 95% da produção do cacau brasileiro são oriundas da Bahia. Desse total, 90% são exportados. O Brasil era um dos grandes produtores mundiais de cacau. Mas, cerca de 60% das plantações foram atacadas por fungos e o País passou de exportador a importador de cacau.


O cacaueiro é também chamado de árvore-da-vida e o cacau recebe o nome de "fruto de ouro". E o maior derivado do cacau, o chocolate, mundialmente consumido, é, realmente, ouro: o mercado de chocolate em todo o globo movimenta US$ 60 bilhões anuais.


O chocolate, a cujas propriedades são atribuídas 'curas' para os males do coração e do cérebro (se diz que o chocolate reduz a dor da perda e diminui a depressão), segue como um dos principais alimentos da humanidade. Não sei se pelas peculiaridades pois que desacredito delas. 


Chocolate é bom, é muito bom. E engorda. Muito. Ai que delícia. Aliás, não é que involuntariamente tenho uma bomba de chocolate na geladeira??? Ah! O meu chocolate industrial favorito é o Prestígio, daquela multinacional suíça que tomou conta de vários produtos de terreiro do Brasil.


Afora minhas rusgas com o chocolate e suas traiçoeiras consequências e com o fabricante que domina o mercado cacaueiro mundial, a região produtora da Mata Atlântica é, ainda, a Floresta do Chocolate: temos, nessa região, 476 espécies diferentes de cacaueiros. Bonito isso. 


Se Hollywood criou "A Fantástica Fábrica de Chocolate" (Charlie and the Chocolate Factory), nós temos uma real floresta da matéria fundamental para fazer chocolate.

De pirar a cuca

quarta-feira, 25 de março de 2009


O Brasil, banhado de norte a sul pelo Oceano Atlântico e cujo solo abriga extensas áreas de águas fluviais, tem uma das maiores ictiofaunas do mundo. Ictiofauna é o conjunto das espécies de peixes que existem em determinada bacia biogegráfica. Somente a Bacia Amazônia tem mais de 2 mil espécies, muitas das quais ainda não foram catalogadas.


(Garoupa com Creme de Presunto Cru, Figos e Cebolinha em Folha de Figo)

A garoupa (Epinephelinae) é uma espécie de água salgada. Embora também seja chamada de garoupa no Brasil, esse peixe pode ser conhecido ainda pelos nomes de cherne, mero, marelaço, galinha-do-mar ou piracuca.


(Garoupa Cozida em Molho de Shoyu)

A galinha-do-mar tem, como sua congênere terrestre, carne branca, muito apreciada para uso na cozinha. É, na pesca industrial, um dos mais importantes peixes. As garoupas habitam os oceanos tropicais, como o Atlântico, e também mares e oceanos subtropicais e temperados. O habitat natural são as formações rochosas ou de corais, que servem de moradia e esconderijo de predadores.


É, entre os peixes de água salgada na costa brasileira, um dos maiores: adultas, as garoupas atingem 1 metro e mais de 50 quilos. São naturalmente predadoras, com boca grande e dentes pontiagudos. Outras espécies da mesma família podem chegar a extravagantes 800 quilos, como já constatado na Austrália.


O peixe está em circulação nacional: na cédula de R$ 100, há uma estampa da garoupa-verdadeira (Epinephelus marginatus). Não que as demais sejam falsas, ao contrário do que ocorre, às vezes, com as cédulas de R$ 100. Mas, as garoupas têm várias espécies, autênticas, diferentemente do papel-moeda que é (deveria ser) único.


Assim como os demais peixes, a garoupa pode ser consumida de várias maneiras: assada, frita, em postas, como moqueca, em arroz de garoupa, em lombos de garoupa e mais uma série de combinações. Mas, não confunda: há outras variedades com o nome de garoupa como a garoupa-gato, por exemplo, que, em São Paulo, chama-se badejo. A garoupa-verdadeira, piracuca, é uma só.

O que é que a baiana tem

terça-feira, 24 de março de 2009


O Brasil é um dos maiores produtores mundiais: são mais de 1 milhão de hectares em todo o País e principalmente no Estado de São Paulo: sozinho, o Estado produz 70% das laranjas e 98% de suco de toda a produção nacional.


(Bolo de Pudim de Laranja)

A história da laranja está atrelada à colonização portuguesa: a partir de 1530, os portugueses começaram a levar a sério a colonização das terras brasileiras e, para tanto, o território do País foi dividido - as capitanias hereditárias -, e entregue a homens de confiança da Corte Portuguesa que tinham que cuidar do povoamento da então colônia e da produção, na época, do açúcar.


(Pato com Laranja)

E foi a partir dessa época que surgiram no Brasil as primeiras mudas de laranjeiras. Os primeiros registros de árvores cítricas - laranjeiras e limoeiros - situam a então Capitania de São Vicente como o berço da citricultura.


As mudas e as técnicas - de plantio, de colheita e de armazenamento - foram importadas da Espanha. Uma das funções originais do plantio de frutos cítricos era combater o escorbuto por meio da produção e ingestão de vitamina C.


Mas, os primeiros pesquisadores da flora e da fauna brasileira apontam para a existência de laranjeiras selvagens e nativas no Brasil. No entanto, nunca houve a comprovação de uma espécie nativa. A laranjeira vinda da Espanha adaptou-se ao clima tropical e gerou uma variedade particular, formada pela conjunção do novo clima e solo do país recém-descoberto. Essa variedade tem reconhecimento internacional: é a laranja Baiana (ou Bahia ou 'de umbigo'), cujo surgimento, especula-se, aconteceu por volta de 1800.


E foi a laranja Baiana que criou o impulso para a expansão da citricultura brasileira. Em 1873, técnicos da cidade de Riverside, da Califórnia (EUA), levaram daqui três mudas de laranja Baiana. Apenas com essas três mudas (oficialmente), a laranja Baiana espalhou-se pelos EUA e outras partes do mundo com um nome diferente: Washington Navel (me ocorreu que é o mesmo processo de apropriação do pioneirismo da aviação sobre o qual o Brasil defende a primazia de Santos Dumont e os norte-americanos insistem pelo reconhecimento dos irmãos Wright).

A laranja é o fruto da laranjeira (Citrus x sinensis) e, assim como a modalidade Baiana é uma evolução advinda das condições climáticas e de terra (terreiro), também a própria laranja é, digamos, uma "dissidência" de outra frutas: surgiu a partir do hibridismo entre o pomelo e a tangerina, ainda na Antiguidade.


O sabor da laranja apresenta variações, conforme a espécie, em relação ao teor de açúcar e de acidez. Em geral, é consumida ao natural ou em suco. As cascas podem ser raspadas para decorar e dar sabor a uma extensa lista de pratos. Da laranja, é possível fazer uso em incontáveis produções, das salgadas (Pato com Laranja) às doces (Pudim de Laranja).

A origem da laranja situa-se em algum ponto entre a Índia e o monte Himalaia. Essa região é pródiga em frutas silvestres que deram origem às frutas "domesticadas" como a limeira (lima), cidreira (cidra), limoeiro (limão), toranjeiras (toranja), laranjeiras (laranja) e outras árvores tipicamente cítricas. A planta foi levada para a Europa no século XVI pelos portugueses e, por esse motivo, costuma-se denominar as laranjas mais doces de "portuguesas".


No interior, quando morávamos na zona rural, havia um secular pé de laranja Baiana que era por nós explorado a despeito da distância de casa e do confronto eventual com o bravio gado nelore que ficava nas pastagens que circundavam a laranjeira. Vezes sem conta nós desfrutamos da fruta doce diretamente do pé. Hoje, a laranjeira Baiana que se destacava na pastagem já não existe mais. Mas permanece a lembrança da laranja de umbigo, imensa, a pender feito bola dourada dos velhos galhos do meu próprio pé de laranja. Baiana.

O fruto que chora a morte da filha e da mãe

segunda-feira, 23 de março de 2009


Uma tribo bastante numerosa enfrentava uma escassez de alimentos. Ficava cada vez mais difícil obter comida para todos. A partir dessa condição, o cacique, Itaki, resolveu tomar uma decisão cruel: todas as crianças nascidas a partir daquele dia seriam sacrificadas para evitar o aumento da população.


(Tigela de açaí com banana, morango e granola, mistura que é considerada uma heresia pelos puritas)

Um dia, a filha do cacique, Iaçã, deu à luz uma menina, que também teve de ser sacrificada. Isso causou muita dor e desespero em Iaçã. Isolada por vários dias na oca, Iaçã pediu ao deus Tupã que mostrasse ao cacique outra alternativa para acabar com o problema da fome que não fosse a morte dos recém-nascidos.


(Roça de açaizeiros)

Uma noite, Iaçã ouviu um choro de criança. Aproximou-se da porta da oca e viu sua própria filha ao pé de uma grande palmeira. Correu em direção à menina e a abraçou. Mas, assim como tinha surgido, a menina desapareceu silenciosamente.


(O açaí durante o processo de separação entre polpa e semente)

Essa visão transtornou Iaçã de tal maneira que a consumiu e, por fim, Iaçã morreu de dor. No dia seguinte, algumas pessoas da tribo encontraram Iaçã abraçada ao tronco da palmeira. Seu rosto, no entanto, estampava um sorriso de felicidade e seus olhos estavam fixados no alto da palmeira, que estava carregada de pequenos frutos escuros.


(Açaí com granola, que é uma das principais combinações consumidas no Sudeste do Brasil)

O cacique Itaki determinou que se colhessem os frutos e, com eles, fez um vinho avermelhado ao qual chamou de açaí (Iaçã, de traz para a frente), para homenagear a filha morta. Com o vinho, alimentou seu povo e, neste mesmo dia, suspendeu os sacrifícios dos recém-nascidos. Surgia, assim, o açaí e sua reconhecida propriedade de sanar a fome.


(A polpa in natura do açaí)

O açaí ou juçara é o fruto do açaizeiro (Euterpe oleracea), espécie nativa das várzeas amazônicas presentes na Venezuela, Colômbia, Equador, Guianas e Brasil (estados do Amazonas, Amapá, Pará, Maranhão e Acre). O açaí é, assim como o era para a lenda indígena, um alimento bastante importante para os povos amazônicos. O cultivo se estendeu por toda a região e, atualmente, pelo menos desde a década de 80, é largamente consumido em todo o País.

O alimento pode ser consumido de várias formas: bebidas, chamadas de bebidas funcionais (acrescidas de outros ingredientes), doces, geleias e sorvetes. Para ser base de alimento humano, o açaí deve ter a polpa retirada. Essa polpa, misturada com água, se transformará no vinho aludido pela lenda. Na verdade, é mais semelhante a um suco espesso.


(O açaí em estado puro e autêntico)

Tradicionalmente, toma-se açaí gelado com farinha de mandioca ou de tapioca na Amazônia. Mas, na medida em que o açaí chegou a outras regiões, algumas modificações no seu consumo foram feitas. Assim, pode se fazer um pirão com farinha e com açaí e comê-lo com peixe assado ou camarão. E também misturar o suco com açúcar, simplesmente. O mais frequente, no entanto, como se vê nas academias e bares, é o açaí servido a partir da preparação da polpa processada com xarope de guaraná, o que lhe dá o aspecto de uma pasta semelhante a sorvete em massa. Pode-se adicionar frutas e cereais a essa mistura - o que é uma heresia para os povos que cultivam o fruto.

Além da lenda descrita no início deste post, etimologicamente, a palavra açaí vem do tupi ïwasa'i, que significa "fruto que chora". Que também é uma referência à Iaçã.

Vintage

domingo, 22 de março de 2009


Dos sabores da minha infância, um dos que mais prezo e conservo, na memória gustativa e afetiva, certamente é o doce de gergelim da marca Istambul. O nome do doce é halawi, tradicional doce de gergelim originário do Oriente Médio.


Eu sou descendente de espanhóis e de sírios e, portanto, o apreço pelo doce de gergelim deve ter alguma ligação com esse fato. Também não consigo rastrear em que momento esse doce apareceu na minha casa e quem dele comentou para que se tornasse tão presente.

O halawi é feito com tahine (pasta espessa de gergelim) e açúcar. O que me traz o gosto do doce e da lembrança e, portanto, tema do post, é o fato de que algumas tradições, quando mantidas, nos fazem mais felizes do que mudanças que, de alguma forma, transformam o mundo em outro mundo que talvez tire a magia daquele mundo anterior no qual acreditávamos estar confortáveis.

Parece um exagero atribuir tanta responsabilidade a um simples doce. Mas, tenho meus motivos para acreditar que na época em que eu raspava obstinadamente o halawi diretamente da lata e consumia bocados daquela pasta endurecida, eu era muito mais feliz. Também mais doce.

Depois da infância adocicada pelo halawi Istambul, estabeleceu-se um hiato entre eu e a lata esverdeada dourada dos meus consumos pueris. Quando, em São Paulo, me deparei com a familiar embalagem, não acreditei. Pensava que, como outras pequenas referências proprietárias, aquela, em particular, havia sido eliminada pela indústria do, ãhn!, progresso.

Portanto, são anos a fio de consumo da pasta gordurosa e pesada. Sempre é um prazer degustar esse doce. Tanto pelo sabor quanto pela afetividade envolvida.

The book is under the table

sábado, 21 de março de 2009


São dois os livros da seção neste sábado, ambos do polêmico chef  norte-americano Anthony Bourdain (do restaurante Les Halles, de Nova York): "Maus Bocados" - Companhia das Letras - 353 páginas, e "Cozinha Confidencial" - Companhia das Letras - 376 páginas.


Quando publicou "Cozinha Confidencial", Bourdain, que gosta da e busca a polêmica, entrou em confronto direto com uma dezena de chefs estrelados de todo o mundo. Em visita ao Brasil, por exemplo, o grosseiro Bourdain perfilou uma série de críticas a alguns dos restaurantes mais badalados de São Paulo para, no final, elogiar o popular "churrasquinho grego", que há quem defenda que é feito, inclusive, de carne de gato.

Mas, se Bourdain tem um lado obscuro, forjado em cozinhas igualmente sombrias dos EUA, por outro lado o chef e escritor sabe exatamente sobre o que escreve. Em ambos os livros, Bourdain não mede as porções de sal ou açúcar e conta tudo, com sabor ora extremamente ácido, ora apimentado. Mas, nunca, insosso.


Sabe aquela expressão "Alguém tem que fazer o trabalho sujo?" Pois é! Creio que Bourdain se presta exatamente a esse papel para passar a limpo (sem, evidentemente, limpar de fato) as cozinhas norte-americanas e mundiais. Goste-se ou não do estilo rolo compressor de Bourdain, tenho que admitir que o chef norte-americano conta boas histórias e não se furta de dar a cara para bater. Isso, do meu ponto de vista, é uma qualidade, ainda que, em alguns momentos, em ambos os livros, o chef norte-americano se coloque em posições de risco que, num olhar mais acurado, não fecham com os fatos.

De qualquer forma, isso não impede que a leitura de ambos os livros acrescentem conhecimento e prazer e, principalmente, que desmistifiquem o glamour e brilho que, certamente, nenhuma cozinha do mundo tem. Sou mais a gordura, o calor e a fumaça do que os brancos e puros dólmãs e aventais dos chefs estrelados.