A afilhada de Sophia Loren

quinta-feira, 19 de março de 2009


Antes de se disseminarem as dezenas de combinações de "burgueres" com "X" alguma coisa, o sanduíche de pão com mortadela era o imperador nos bares, com certeza. Me recordo de um tempo que o trio pão-mortadela-tubaína reinava soberano tanto nos bares do interior de São Paulo quanto em pequenas expedições - passeios, cavalgadas, banho de cachoeira.


Depois, a profusão de cheeseburgueres e hamburgueres com salada, ovos, maionese, bacon, alface, tomate e, mais à frente, o domínio dos "Macs", terminou por colocar o saboroso pão com mortadela em reclusão, categorizado como "lanche menor", "pobre". Em alguns lugares, no entanto, como no Mercado Municipal de São Paulo, ocupa um lugar de honra.

A mortadela (palavra derivada da mesma denominação italiana "mortadella") é um embutido (no Brasil, chamamos de frios) que pode ser feito tanto de carne de porco quanto de vaca. Em geral, a mortadela é temperada com pimenta preta (que pode ser inteira ou moída), noz moscada, coentro e algum outro tempero secreto, conforme a origem.


Esse embutido popular surgiu na Bolonha, Itália, onde consta um registro datado de 1376. No Brasil, chegou pelas mãos dos imigrantes italianos no início do século XX. E olha a curiosidade: a mortadela tem até madrinha: é a atriz Sophia Loren, que protagonizou um filme de 1971 chamado "La Mortadella". Claro que não poderia haver melhor embaixatriz para um produto tão genuinamente italiano. Na minha região, onde existem descendentes de italianos, até há bem pouco tempo alguns ainda fabricavam a própria mortadela. Não sei se deixaram de fazê-lo, já que são outros os tempos.

A mortadela é identificada como produto de apelo popular, barata e bastante usada no consumo de classes menos favorecidas. No entanto, isso é puro desconhecimento. O produto, na Itália, é nobilíssimo, inclusive com Denominação de Origem Controlada (DOC). A Mortadella Bologna tem DOC e, conforme esse critério, deve ser produzida apenas com carne suína pura, na forma cilíndrica ou oval, deve ter cor rosa e um odor intenso. As carnes e gorduras usadas na fabricação da Mortadella Bologna são de alta qualidade, trituradas de forma adequada até se obter uma pasta fina. Ao ser fatiada, essa mortadela deve apresentar uma superfície aveludada, com uma cor rosa viva e uniforme. O sabor é típico e delicado. Essa é a autêntica mortadella.


Claro que há variações, tanto na Itália quanto no Brasil. Na Itália, existem alguns outros embutidos dessa variedade como a Prato (temperada com alho) e a Amatrice (ligeiramente defumada). A criatividade dos fabricantes de embutidos já colocou de tudo na mortadela: pistache, azeitona, pimentas vermelhas, pimentão. A lista é longa.

De preferência, a mortadela é consumida crua, em fatias ou pode ser usada como recheio de lanches e sanduíches. Ainda na Itália, é usada como antepasto, acompanhamento, no recheio de massas, no recheio de almôndegas (polpette) e em pequenas tortas de batata (tortini). Em Portugal e na Espanha, como aqui, há variedades recheadas de azeitona e de pimentas vermelhas.


No Brasil, exceto por marcas bastante conhecidas e de procedência controlada, alguns tipos de mortadelas (de frango e de peru) têm gosto plástico. Ou seja, estão bastante distantes dos padrões italianos. Pela lei, a mortadela brasileira deve ser composta de 50% de carne, 10% de miúdos e entre 25% a 30% de gordura.

Mas - e aqui está o motivo da associação da mortadela com o poder aquisitivo do brasileiro -, a maior parte da produção de mortadela do Brasil leva bagaços e refugos vegetais (particularmente do milho), com apenas 35% de carne na sua composição final. É o que explica, também, o gosto de plástico, que nem de longe lembra o sabor da verdadeira mortadela. Sim, daquela que se comia na cozinha feita de tábuas de madeira, em cujo teto reinava uma peça inteira de mortadela dependurada e que podia ser consumida ao longo dos dias e, até onde eu me lembro, não estragava com a ação da fumaça do fogão de lenha e tampouco com o clima.

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