Oi, tum tum... bate coração, pode bater...

segunda-feira, 25 de maio de 2009


Para dias apurados, um texto leve. Se a balança pende para o lado direito, acrescente-se peso no esquerdo para equilibrar. Têm momentos que demandam essa atitude. Um contrapeso para que não haja rupturas.


Esta segunda-feira, como insistem em sê-los, os primeiros dias úteis das semanas, sobrecarregou-me de iniquidades profissionais. Nada que não consiga se administrar e, ao final do dia, encerrar tudo e colocar em estado de espera para o primeiro tilintar do telefone do dia seguinte.


Mas, é bom, quando me apetece, aspergir um pouco de orvalho sobre tão árido solo. Sem um pôr do sol decente nesta São Paulo outonal, contentei-me com o escuro de nuvens que, carregadas de presságio, anunciam, ainda para esta noite, uma convulsão nos céus. Sinal nada auspicioso para esta cidade que não convive muito bem com o intangível de, imagine!, uma chuva!


Assim que, portanto, cerraram as cortinas celestes e um espesso veludo recobriu tudo, tive iniciativas de galinhas: correr para o poleiro e me recolher ao escape do relento. O meu recolhimento não trata-se, porém, de me meter no meio de galhos velhos e ao abrigo do vento. É uma clausura que, paradoxalmente, me liberta: corri até a padaria e me empolerei ante os balcões para a colheita do dia: pão francês, pão de queijo, queijadinha, quindim, miríades doces e salgadas que me colocam feito beduíno frente ao oásis.


Em reticentes ensaios para me furtar ao convidativo ato de pedir isso, aquilo e dácáum'cadinho daquilo lá também, contritamente, me retive ao óbvio: me vê lá pão francês e aquele piteuzinho coberto de erva-doce. Em compra de suprimentos anteriores, já tinha eu me abastecido de queijo coalhado dos pequenos grãos da erva-doce. E o chá de erva-doce, bem docinho, oh!, quase um suspiro de satisfação a subir com as ondas de vapor.

Egípcia de nascimento, a erva-doce (Pimpinella anisum) parece um orvalho verde a coroar um canteiro guarnecido. Macia sob o toque, sedosa feito um cabelo tratado a babosa e óleos emulsionantes, a erva-doce refresca o duro do dia. Quebra a casca de noz que, por vezes, nos envolve em couraças de guerra, feito soldados romanos que faziam da armadura a segunda pele.


É inevitável: se suave é a noite (nem sempre), suave é a erva-doce que, se tem aroma de alvorecer, tem também a propriedade de aquietar o intrépido dia que se esvai. Doce de nascença, a erva, já o sabiam os antigos, era para beberagens, medicinais ou não. Os romanos a usavam para preparar bolos, servidos ao final dos faustosos banquetes. Para aplacar a comilança, o chá verde sempre foi recomendado. Basta ir aos chineses e ver. A Inglaterra, em priscas eras, pagava impostos para importar a erva-doce. Doces tempos para as Bretanhas.

Aqueles que têm pouca fé podem não crer, mas, outros, mais ajuizados, afirmam que a erva-doce é afrodisíaca, que é capaz, por si mesma, de promover harmonia, paz e prosperidade. De paz e prosperidade, não detenho estocagem suficiente para confirmar a teoria. Mas, uma chávena de erva-doce é, sim, eficaz para harmonizar.


A erva-doce é consumida majoritariamente em forma de chá. Porque, não sei se você concorda comigo, mas, no íntimo, credito aos chás o estranho poder de aquietar, apaziguar o ácido gosto que fica na boca depois de um, sei lá, dia com gosto de cabo de guarda-chuva?? O chá retém a propriedade de acalentar e nos dar dignidade. Uma xícara de chá fumegante aquece o corpo e aquiesce o espírito, pois não?

De qualquer forma, eu recomendo uso intensivo da erva-doce em broas de milho (hummm!!!), queijos, carnes, biscoitos, saladas, na pasta e até mesmo no arroz, por que não? Uma chuvinha de sementes, só para espantar aquelas feitiçarias pequenas que vêm travestidas de incômodas sensações de cansaço. A erva-doce é harmonia, sim. Feito uma harpa, um acalento para amargos estômagos cujos âmagos querem uma pitadinha de orvalho. E só. Para que o coração continue na cadência de sempre, sem sobressaltos ou pausas longuíssimas que nos deixam, os assustados, com cabelos mais espetados do que as folhas de erva-doce. Tum... tum... 

Aquela que se come em lugar do pão

terça-feira, 19 de maio de 2009


Escrita por Pero de Magalhães Gândavo em 1576, a "História da Província de Santa Cruz" versa sobre um Eldorado que, nos primórdios da conquista portuguesa, ainda nem Brasil era, embora lhe quisessem "vulgarmente" chamar Brasil.

Pois, entre o nome nobre e o vulgo nickname, a terra que viria ser, afinal, Brasil, despertou aos olhos do estrangeiro em discurso exclamativo que viu brotar, imperial, com raízes firmes que, como a nascente nação, se mais apegam ao chão quanto tanto a tentamos arrancar do doce solo.

E eis que o fálico símbolo enraizado que faz brotar das profundas o caule aparentemente frágil e se põe em pé, feito soldado de territórios guardião, em fileiras simétricas, embora não compostas pela mão racional europeia que chegava.

Era a primeira impressão. E se primeira é a impressão que fica, ficou tal que a mandioca marcou indelevelmente que a terra era nostra, de raiz e de propriedade, dos ancestrais índios, selvagens primitivos a pintar o corpo por qualquer dá cá aquela palha.

E assim que marco ficou da gastronomia brasileira a mandioca a primeira. A merecer loas em arcaico português quinhentista e a tingir em papel timbrado da Coroa o primeiro registro do nativo fruto da terra. A mandioca indígena, pois, alçada à condição, enfim, de ingrediente.

E com esse texto em hieróglifos rebuscados, resgato a história da mandioca. Ainda que o texto antigo seja, não lhe é o sentido. Como verás, se bravo(a) for, leitor(a) meu(minha), a decifrar o pergaminho que descansa nos anais lá do lado de lá do Atlântico:


"São tantas e tam diversas as plantas, fruitas, e hervas que ha nesta Provincia, de que se podiam notar muitas particularidades, que seria cousa infinita escreve-las aqui todas, e dar noticia dos effectos de cada huma meudamente. E por isso nem farei agora mençam sinam de algumas em particular, principalmente daquellas de cuja virtude e fruito Participão os Portuguezes.

Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós: quando a querem plantar em alguma roça cortão-na e fazem-na em pedacos, os quaes metem debaixo da terra, depois de cultivada, como estacas, e dahi tornaõ arrebentar outras plantas de novo: e cada estaca destas cria tres ou quatro raizes e dahi pera cima (segundo a virtude da terra em que se planta) as quaes põem nove ou dez meses em se criar: salvo em Sam Vicente que põem tres annos por causa da terra ser mais fria.

Estas raizes a cabo deste tempo se fazem mui grandes á maneira de Inhames de S. Thomé, ainda que as mais dellas sam compridas e revoltas de feição de corno de boi. E depois de criadas desta maneira si logo as nam querem arrancar pera comer, cortam-lhe a planta pelo pé, e assi estão estas raizes cinco, seis meses debaixo da terra em sua perfeicão sem se danarem: e em Sam Vicente se conservam vinte, e trinta annos da mesma maneira. E tanto que as arrancão põem-na a curtir em agoa três quatro dias, e depois de curtidas, pizão-nas muito bem.

Feito isto metem aquella massa em humas mangas compridas e estreitas que fazem de humas vergas delgadas, tecidas á maneira de cesto: e ali a espremem daquelle súmo da maneira que nam fique delle nenhuma cousa por esgotar: porque he tam peçonhento e em tanto extremo venenoso, que si huma pessoa ou qualquer outro animal o beber, logo naquelle instante morrerá.

E depois de assi a terem curada desta maneira põem hum alguidar sobre o fogo em que a lanção, a qual está mexendo huma India até que o mesmo fogo lhe acabe de gastar aquella humidade e fique enxuta e disposta pera se poder comer que será por espaço de meia hora pouco mais ou menos.

Este he o mantimento a que chamão farinha de páo, com que os moradores e gentio desta Provincia se mantém. Ha todavia farinha de duas maneiras: huma se chama de guerra e outra fresca. A de guerra se faz desta mesma raiz, e depois de feita fica muito seca e torrada de maneira que dura mais de hum anno sem se danar. A fresca he mais mimosa e de melhor gosto: mas nam dura mais que dous ou tres dias, e como passa delles, logo se corrompe. Desta mesma mandioca, fazem outra maneira de mantimentos que se chamão beijús, os quaes sam de feição de obreas, mas mais grossos e alvos, e alguns delles estendidos da feição de filhós. Destes uzam muito os moradores da terra, principalmente os da Bahia de Todos os Santos, porque são mais saborosos e de melhor disistão que a farinha.

Tambem ha outra casta de mandioca que tem differente propriedade desta, a que por outro nome chamão aipim, da qual fazem huns bôlos em algumas Capitanias que parecem no sabor que excedem a pão fresco deste Reino. O sumo desta raiz nam he peçonhento como o que sae da outra, nem faz mal a nenhuma cousa ainda que se beba. Tambem se come a mesma raiz assada como batata ou inhame: porque de toda maneira se acha nella mu ito gosto. Além deste mantimento, ha na terra muito milho zaburro de que se faz pão muito alvo, e muito arroz, e muitas favas de differentes castas, e outros muitos legumes que abastão muito a terra.

Huma planta se da támbem nesta Provincia, que foi da ilha de Sam Thomé, com a fruita da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta he mui tenra e nam muito alta, nam tem ramos senam humas folhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita della se chama bananas. Parecem-se na feição com pepinos, e crião-se em cachos: alguns delles ha tam grandes que tem de cento e cincoenta bananas pera cima, e muitas vezes he tamanho o peso della que acontece quebrar a planta pelo meio. Como são de vez colhem estes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. Depois de colhidos cortão esta planta porque nam frutifica mais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer della huns filhos que brotam do mesmo pé, de se fazem outros semelhantes.

Esta fruita he mui sabrosa, e das boas, que ha na terra: tem huma pelle como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lanção fora quando a querem comer: mas faz dano á saude e causa fevre a quem se desmanda nella. Humas arvores ha tambem nestas partes mui altas a que chamão Zabucáes: nas quaes se criam huns vasos tamanhos como grandes cocos, quasi da feição de jarras da India. Estes vasos são mui duros em gram maneira, e estão cheios de humas castanhas muito doces, e saborosas em extremo: e tem as bocas pera baixo cubertas com humas sapadoiras que parece realmente nam serem assi criadas da natureza, senam feitas por artificio de industria humana.

E tanto que as taes castanhas são maduras caem estas sapadoiras e dali começam as mesmas castanhas tambem a cahir pouco a pouco, até nam ficar nenhuma dentro dos vasos.

Outra fruita ha nesta terra muito melhor, e mais prezada dos moradores de todas, que se cria em huma planta humilde junto do chão: a qual planta tem humas pencas como de herva babosa.

A esta fruita chamão Ananazes, e nascem como alcachofres, os quaes parecem naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho, e alguns maiores. Depois que são maduros, tem hum cheiro mui suave e comem-se aparados feitos em talhadas. São tam sabrosos, que a juizo de todos nam ha fruita neste Reino que no gosto lhes faça vantagem, e assi fazem os moradores por elles mais, e os tem em maior estima que outro nenhum pomo que haja na terra.

Ha outra fruita que nasce pelo mato em humas arvores tamanhas como pereiras, ou macieiras: a qual he de feição de peros repinaldos, e muito amarella. A esta fruita chamão cajús: tem muito sumo, e come-se pela calma pera refrescar, porque he ella de sua natureza muito fria, e de maravilha faz mal, ainda que se desmandem nella. Na ponta de cada pomo destes se cria hum caroço tamanho como castanha, da feição de fava: o qual nasce primeiro, e vem diante da mesma fruita como flôr; a casca delle he muito amargosa em extremo, e o meolo assado he muito quente de sua propriedade e mais gostoso que a amendoa.

Outras muitas fruitas ha nesta Provincia de diversas qualidades comuns a todos, e são tantas que já se acharão pela terra dentro algumas pessoas as quaes se sustentavão com ellas muitos dias sem outro mantimento algum. Estas que aqui escrevo, são as que os portuguezes têm entre si em mais estima, e as melhores da terra.

Algumas deste Reino se dão tambem nestas partes, convem a saber, muitos melões, pepinos, romãs e figos de muitas castas; muitas parreiras que dão uvas duas, tres vezes no anno, e de toda outra fruita da terra ha sempre a mesma abundancia por causa de não haver la (como digo) frios, que lhes fação nenhum prijuizo. De cidras, limões, e laranjas ha muita infinidade, porque se dão muito na terra estas arvores de espinho, e multiplicão mais que as outras.

Além das plantas que produzem de si estas fruitas, e mantimentos que na terra se comem, ha outras de que os moradores fazem suas fazendas, convém a saber, muitas canas de açucar, e algodoaes, que he a principal fazenda que ha nestas partes, de que todos se ajudão e fazem muito proveito em cada huma destas Capitanias, especialmente na de Pernambuco que são feitos perto de trinta engenhos, e na Bahia do Salvador quasi outros tantos, donde se tira cada hum anno grande quantidade de açucares, e se dá infinito algodam, e mais sem comparaçam que em nenhumas das outras. Tambem ha muito páo brasil nestas Capitanias de que os mesmos moradores alcanção grande proveito: o qual páo se mostra claro ser produzido da quentura do Sol, e criado com a influencia de seus raios, porque nam se acha sinam debaixo da torrida Zona, e assi quando mais perto está da linha Equinocial, tanto he mais fino e de melhor tinta; e esta he a causa porque o nam ha na Capitania de Sam Vicente nem dahi pera o Sul.

Hum certo genero de arvores ha tambem pelo mato dentro na Capitania de Pernambuco a que chamam Copahibas de que se tira balsamo mui salutifero e proveitoso em extremo, para enfermidades de muitas maneiras, principalmente as que procedem da frialdade: causa grandes effeitos, e tira todas as dores por graves que sejam em muito breve espaço. Pera feridas ou quaesquer outras chagas, tem a mesma virtude, as quaes tanto que com elle lhe acodem, sáram mui depressa, e tira os signaes de maneira, que de maravilha se enxerga onde estiverão e nisto faz vantagem a todas as outras medicinas.

Este oleo nam se acha todo o anno perfeitamente nestas arvores, nem procuram ir busca-lo senam no estio que he o tempo em que asinaladamente o criam. E quando querem tira-lo dão certos golpes ou furos no tronco dellas pelos quaes pouco a pouco estão estilando do amago este licor precioso. Porém nam se acha em todas estas arvores sinam em algumas a que por este respeito dão o nome de femea, e as outras que carecem delle chamão machos, e nisto sómente se conhece a differença destes dous generos, que na proporçam e semelhança nam differe nada humas das outras. As mais dellas se achão roçadas dos animaes, que por instinto natural quando se sentem feridos ou mordidos de alguma fera as vão buscar pera remedio de suas enfermidades.

Outras arvores differentes destas ha na Capitania dos llhéos, e na do Spirito Santo a que chamão Caborahibas, de que tambem se tira outro balsamo: o qual sae da casca da mesma arvore, e cheira suavissimamente. Tambem aproveita para as mesmas enfermidades, e aquelles que o alcanção tem-no em grande estima e vendem-no por muito preço, porque além de as taes arvores serem poucas correm muito risco as pessoas que o vão buscar, por causa dos inimigos que andam sempre naquella parte emboscados pelo mato e não perdoão a quantos achão.

Tambem ha huma certa arvore na Capitania de Sam Vicente, que se diz pela lingoa dos lndios "Obirá paramaçaci", que quer dizer páo para enfermidades: com o leite da qual sómente com tres gotas, purga huma pessoa por baixo e por cima grandemente. E si tomar quantidade de huma casca de noz, morrerá sem nenhuma remissam. De outras plantas e hervas que nam dão fruito nem se sabe o pera que prestam, se podia escrever, de que aqui nam faço mençam, porque meu intento nam foy sinam dar noticia (como já disse) destas de cujo fruito se aproveitão os moradores da terra. Somente tratarei de huma mui notavel, cuja qualidade sabida creio que em toda parte causará grande espanto.

Chama-se herva viva, e tem alguma semelhança de silvam macho. Quando alguem lhe toca com as mãos, ou com qualquer outra cousa que seja, naquelle momento se encolhe e murcha de maneira que parece criatura sensitiva que se anoja, e recebe escandalo com aquelle tocamento. E depois que assossega, como cousa já esquecida deste agravo, torna logo pouco a pouco a estender-se até ficar outra vez tam robusta e verde como dantes. Esta planta deve ter alguma virtude mui grande, a nós enconberta, cujo effeto nam será pela ventura de menos admiraçam. Porque sabemos de todas as hervas que Deos criou, ter cada huma particular virtude com que fizessem diversas operações naquellas cousas pera cuja utilidade foram criadas e quanto mais esta a que a natureza nisto tanto quiz assinalar dando-lhe hum tam estranho ser e differente de todas as outras."

The book is under the table

sábado, 16 de maio de 2009

Das cozinhas mundiais, duas se sobressaem quando se trata de combinar comida e saúde: a japonesa, considerada a comida mais saudável do mundo, e a mediterrânea, tida como a segunda cozinha mais saudável.


A cozinha mediterrânica sempre exerceu um forte apelo sobre mim: sou adepto do azeite, dos encorpados cozidos, dos frutos do mar e das sobremesas cheias de manha e de carboidratos. Se pudesse, minha comida seria regada a azeite, todos os dias, com saladas entremeadas de frutos do mar, sopas leves e cozidos para aquecer o corpo e a alma.

O mar Mediterrâneo banha alguns países da Europa e chega até mesmo perto do Oriente Médio e da África. Rota comercial ativa dos fenícios, egípcios, cartagineses, persas e romanos, o Mediterrâneo agregou nas respectivas costas todas as influências desses povos, extremamente presentes nas cozinhas atuais.

Assim, numa região geográfica que passa pela Espanha e se estende por Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, Israel, Líbano, Síria, Turquia, Grécia, Itália e sul da França, tudo pode ser considerado mediterrânico. Na verdade, não existe uma cozinha mediterrânea por definição, e sim a combinação de milhares de ingredientes que formam o caldo mediterrâneo.

Os ingredientes típicos são os vegetais (tomate, beringela, pimenta, alho), sementes comestíveis e cereais, massas, ervas frescas (as mais usadas no mundo provêm dessa região), especiarias, azeite e azeitona, e, claro, a fonte abundante dos mais diversos frutos do mar e peixes de água salgada. Por conta das regiões montanhosas que formam as terras à beira do Mediterrâneo, a carne vermelha é mais rara do que em regiões de extensas pastagens como o Brasil e Argentina, por exemplo.

A obra "O Livro Essencial da Cozinha Mediterrânica" - editora Paisagem - 304 páginas, traz uma série de receitas dessas regiões banhadas pelo bonito mar Mediterrâneo. De forma que, esteja você em Barcelona, na Espanha, ou em Rabat, capital do Marrocos, experimentará, num desses lugares, o que se convenciona a chamar de "cozinha mediterrânea". De um ponto a outro, sejam os pescados da Cataluña ou o cuscuz marroquino, esse pequeno pedaço do mundo recortado pelo Mediterrâneo conecta-se intimamente por um fio invisível que une os diferentes povos numa base de cozinha única.

O livro faz parte de uma série da editora Paisagem, chamada de "O Livro Essencial", sobre a qual já tive o prazer de comentar neste blog antes em passeio pela cozinha asiática. A riqueza do Mediterrâneo pode ser apenas vislumbrada nas páginas do livro, já que o manancial mediterrâneo de receitas de toda a região é tão extenso quanto o mar que a banha.

(P.S. Sabe do que eu gosto? De vitamina de abacate batida com leite e açúcar. O abacate é uma das frutas mais ricas em gordura e proteína e 100 gramas da fruta equivalem a 162 calorias. Ainda assim, me apego ao abacate tal qual o caroço se lhe apega: com fervor de pertencimento. Por que eu simplesmente não me satisfaço com uma pera, já que 100 gramas dessa fruta equivalem a apenas 56 calorias? Por quê?)

Reformas no terreiro

sexta-feira, 15 de maio de 2009


Você gosta de mudanças? Eu gosto. Gosto de uma casa nova, com cheirinho de tinta, de madeira de móveis novos, de tirar das caixas pequenas maravilhas que nos deixam com cara de quem acabou de ganhar presente de Natal.


Por isso esse terreiro acabou de ganhar uma roupagem nova. Se a forma muda, não o conteúdo. Você, caro(a) leitor(a) deste espaço, deve ter percebido que não tenho palmilhado este terreiro com a frequência com que fazem as reses quando vão e voltam da água diária até que se criem sulcos profundos na terra.

Mas, se não tenho vindo tanto à bica, e nem pretendo aqui me quedar, quebrado feito aquele vaso da lenda, isso não quer dizer que tomei meu rumo feito uma ave de arribação. Apenas diminuí a frequência por motivos outros que não cabem nesse espaço.

Assim, os posts deverão ficar mais espaçados do que eu pretendia. No entanto, a proposta inicial permanece, qual seja a de alimentar esse Manifesto Terreiroir de conteúdo de coisas da terra. Você sabe que, na medida em que pesquiso sobre os assuntos que pautam o Manifesto, vejo, cada vez mais, a ausência de informações precisas, ou nem tanto, sobre ingredientes nativos.

Por isso, muitas vezes tenho que recorrer a elementos que não são exatamente terroir. Mas, não sei se você concorda, o terroir também se faz com plantas e animais que, trazidos para o território brasileiro, aqui se adaptaram e, em alguns casos, com pequenas variações. O que, na minha opinião, já é o bastante para que eu os aproprie como legítimos terroirs.

Ou vai me dizer que depois de 200, 300 ou 400 anos de solo brasileiro dá para chamar uma laranja ou um porco de europeu ou de asiático? Acho que não. De qualquer forma, cada terra, Brasil incluso, tem uma quantidade limitada de produtos nativos.

A maior parte dos ingredientes que se encontram aqui e em outras regiões de todo o mundo são produto de intercâmbios, seja o dos ex-colonizadores portugueses, seja por meio de contrabandos ilícitos de mudas, sementes, animais e aves. Esses escambos antigos é que permitiram que a nossa riqueza gastronômica se elevasse a níveis altos. Ou, do contrário, estaríamos restritos a comer mandioca, milho e frutas silvestres.

Claro que não é simplista assim. Contudo, terroir é um conceito sob o qual cabe tanto o produto legítimo do pedaço de terra específico quanto de uma determinada espécie que, nativa ou não, tenha se destacado de forma qualitativa e, por isso, pode receber a chancela de terroir.

Convido você, leitor(a), para continuar a viajar nessa imensa planície de descobertas surpreendentes sobre a rica e multifacetada história da alimentação humana da qual somos, o Brasil, apenas um pequeno contribuinte para o todo.

A primeira vez a gente nunca esquece

terça-feira, 12 de maio de 2009


De repente, tive ímpetos de comer farofa feita de farinha de milho com bacon e couve-manteiga. Desejo equivalente àquele de mulher grávida, que não pode esperar o dia chegar nem que seja 3 horas da manhã ou que a chuva caia torrencialmente lá fora.

Foi isso: uma torrente de desejo por farofa caseira. E o engraçado é que nem me recordo mais de quanto tempo que comi uma farofa dessas. E tampouco sou chegado em couve. Mas uma coisa levou à outra e vi, inclusive, finos filetes de couve, tão finos quanto linhas de anzol, prontos para serem refogados ao alho, óleo e bacon. Não teve jeito. Fui ao supermercado com a firmeza dos famintos (e gulosos), com a listinha na cabeça, o gosto na boca e a farofa a aquecer meu famélico estômago.

Mas não sei o que é dos supermercados hoje em dia, que funcionam 24 horas, mas que não nos guarnecem das coisas simples da vida. Aquele amontoado de gôndolas, com queijos franceses, azeites espanhóis, misturas japonesas e até mesmo molhos árabes e, numa contradição gritante, não dispõem de bananas, laranjas ou couve!!!


(Tão arredia, a catalônia não se mostra; esta foi a única foto que localizei, ainda em tenros brotos)

Quem é o encarregado de repor o ingrediente básico? Chama o gerente, depressa. Que até mesmo a mais simples venda do interior é capaz de oferecer couve e, se não as tiver, por certo mandará colher logo ali, nos fundos de casa.

Essa é a grande diferença entre a cidade e o interior: cá, não se acha couve quando a vontade assassina está a te deixar tão esverdeado quanto a hortaliça. Lá, apanha-se couve em grandes folhas, gigantes, disponíveis feito leques a se abrirem, convidativos ao frescor.

Pois que acabei sem a couve, objeto número 2 da minha peregrinação. O número 1 era a farinha de milho. Para não sair contrafeito, busquei alternativas. Qual o quê! A única verdura mais próxima da couve era a escarola. E só. Tenho, confesso, um pouquinho de paúra de escarola, de folhas de mostarda, espinafre e outras verdinhas. Mas a vontade, misturada ao desejo, permaneceu.

Saí de lá confiante de que tinha nas mãos um maço de escarola, daqueles hidropônicos, bem vedados na embalagem e, aparentemente, mais saudáveis que as verduras compradas in natura. O que duvido à larga. As folhas, quando as desejo, e são raros esses momentos, as prefiro soltas mesmo. Como se eu tivesse colhido na horta. Mais fácil de assimilá-las, assim.

Cheguei em casa, guardei a compra e reservei os ingredientes para a farofa. Ao abrir a embalagem da escarola, surpresa: não havia escarola, e sim catalônia. Achei que estava a ter crise de catatonia, originada na verde fome. Nada! Era catalônia mesmo e ponto final.

De forma que, à 0:15 minutos desse dia de 12 de maio de 2009 fomos, a catalônia e eu, introduzidos um no mundo do outro. Prazer, como está e shhhhh!!! para a panela já! Rápido assim, o nosso encontro não teve interlúdio ou preliminares que fossem. Eu, ávido. A catalônia, impassível, a se fazer passar por escarola.

Sou de pouca fala quando se trata de verduras, legumes e hortaliças: as folhas, confesso, as confundo bastante. Por ser um consumidor bissexto de vegetais, deles pouco sei. De qualquer forma, a recíproca é verdadeira: a catalônia tampouco tinha me visto mais gordo (sem trocadilhos).

Tratei a catalônia como trataria a couve: com carinho mas com precisão. Cortes cirúrgicos, faca aqui, faca ali e já o alho tiritava na panela, a farinha ameaçava embolar e, finalmente, catalônias ao fogo. Estava pronta minha farofa. Que comi, voraz. A catalônia, que se bêbado eu estivesse, passaria por almeirão mais requintado, se prestou muito bem ao papel de couve. Madrugada memorável de dois virgens, um do outro. Agora, íntimos.

Vintage

domingo, 10 de maio de 2009



Por muito tempo, a única cor que eu enxergava através do jarro era o vinho. Uma cor forte e brilhante, como se de uva verdadeira fosse. Obviamente, os componentes químicos sugeriam a percepção colorida e, de forma mais intensa, induziam ao imediato consumo.

Tenho com as jarras de vidro, essas de bojo arredondado, uma relação de afetividade que, com certeza, me foi criada pela embalagem do refresco em pó Ki-Suco. Gostava de todos: abacaxi, uva, laranja. Havia outros, não? É que o tempo tem o mérito e, em igual medida, o demérito de fazer escoar da mente as lembranças.

No Brasil largamento popularizado como Ki-Suco, o refresco em pó nasceu Kool-Aid nos EUA em 1927, inventado por Edwin Perkins, no estado do Nebraska. Engraçado que Nebraska sempre me remeteu à neve, em sensação bastante semelhante à jarra que poreja, geladinha.

Antes de inventar o Kool-Aid, Edwin vendia suco concentrado em garrafas. Mas era um produto caro e se quebrava com facilidade. Ao tentar encontrar a solução, transformou o suco em pó e, no ano seguinte, lançou o novo suco no mercado, com seis diferentes sabores: cereja, uva, laranja, limão, morango e raspberry.

Em 1953, a empresa de Edwin foi vendida para a General Foods Company que, em 1989, seria incorporada pela Kraft para formar a Kraft Foods. Em 1955, foram acrescentados à linha Kool-Aid mais dois sabores: root beer e lemonade.

No Brasil, o Kool-Aid chegou em 1961, com o nome de Ki-Suco. Três anos depois, as embalagens foram reformuladas, com a adição do Kool-Aid Man, personagem bonachão que é uma jarra estilizada cheia de suco suculento.

Em 1996, com a aquisição pela Kraft Foods, houve uma série de modificações no Ki-Suco. Antes, porém, havia o Q-Refresco, da mesma empresa do Kool-Aid. Depois da Kraft, os dois sucos em pó passaram a ser concorrentes. Atualmente, o mercado está tomado por uma série de concorrentes, entre os quais o mais visível é o Tang. Acabou a hegemonia do Ki-Suco. No final do ano passado, eu vi embalagens de Ki-Suco num supermercado do interior de São Paulo e me recordei da embalagem de papel, pequena, de reconhecimento imediato.

Agora, são todas semelhantes as embalagens, de plástico. O Ki-Suco que eu conhecia existe, modificado em vários níveis pelas sucessivas fusões empresariais. Mas - e pode me chamar de saudosista -, desde que o refresco perdeu o apelo por conta das modificações e da chegada de concorrentes, eu sinto que o Ki-Suco perdeu também a visibilidade e a identidade únicas que tinha.

Embora eu ainda conserve o apreço pela jarra bojuda de vidro (tenho uma em casa, de intenso uso), nunca mais adquiri Ki-Suco. Passei ao largo pela larga jarra e, em tangente rebeldia, ando a fazer sucos, quando os faço, com o concorrente que tem tango no nome.

Uma pena que, quando ocorrem fusões, as empresas compradoras têm urgência em apagar o produto comprado ou diminuir sua importância, marca e história. Ainda que o Ki-Suco siga em linha de produção, certamente mais perdeu do que ganhou com os proprietários novos. Mas eu ainda gosto de pensar que as minhas papilas gustativas são capazes de resgatar o gosto quase vaporoso de Ki-Suco e retê-lo um pouquinho no compartimento de sabores. Dá um sabor de infância. Dá sim.

The book is under the table

sábado, 9 de maio de 2009


"Dize-me o que comes e te direi quem és."

"A mesa é o único lugar onde jamais nos entediamos durante a primeira hora."

"A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma nova estrela."

"Uma sobremesa sem queijo é uma bela mulher a quem falta um olho." (sob a ótica do francês, claro)

"Quem recebe os amigos e não dá uma atenção pessoal à refeição que lhes é preparada não é digno de ter amigos."


Esses aforismos foram cunhados por Jean Anthelme Brillat-Savarin em 1825, quando publicou o livro "A Fisiologia do Gosto" (Physiologie do Goût) - Companhia das Letras - 379 páginas. Brillat-Savarin, que viveu entre 1755 e 1826, queria fundar a ciência da gastronomia. Não o conseguiu. Gastronomia pode ser muita coisa. Mas ciência não o é. No entanto, o autor não tinha ideia da dimensão que tomaria o livro. Já na época, "A Fisiologia" obteve sucesso. E tornou-se um clássico da gastronomia.

Brillat-Savarin foi muita coisa: advogado, juiz, prefeito, violinista, juiz da Suprema Corte de Napoleão e, sobretudo, um apaixonado pelos prazeres da mesa. O livro é maravilhoso, por inteiro. Combina o fascínio pelos fundamentos científicos com o goût (gosto) do autor pela anedota, de forma geral. Savarin é extremamente divertido em suas considerações.

O livro está dividido em meditações (são 30), transição e variedades. Entre algumas das meditações, estão temas como "Teoria da Fritura", "Dos Descansos de Caça", "Do Repouso", "Da Magreza" e outros tão divertidos quanto. Sobre "A Fisiologia" disse o escritor, ensaísta, filósofo e semiólogo francês Roland Barthes: "Trata-se de um livro paradoxal, pois o que se exprime pela elegância do estilo, do tom mundano das anedotas e da futilidade graciosa das descrições é a grande aventura do desejo."

Desejo que se expressa nas sensuais refeições, na comida de forma geral. Porque comer é um ato sensual, no estrito sentido de usar os cinco sentidos. E é sensual também no que tange ao sexual porque, de alguma forma filosófica, o ato de alimentar o corpo está relacionado ao ato de alimentar o espírito e o sexo não se furta a um nem ao outro. Comer é um prazer, é tudo. Não é por acaso que uma boa refeição sempre precede o ato sexual. Não é por acaso.

Só uma reclamação, que não tem nada a ver com o conteúdo do livro de Savarin: a minha edição (5ª. reimpressão da Cia. das Letras) tem algumas folhas enrugadas. O que eu não gosto, a propósito de goûts. Tenho com os livros uma relação simbiótica e me incomoda que estejam amassados, sujos ou com restos de acabamentos imprecisos. É uma coisa ranzinza, eu sei. Mas é questão de fisiologia de gosto também, não?

Outra coisa: por que cargas d'água as editoras não oferecem capas de livros com maior qualidade? Toda vez que eu escrevo sobre livros, encontro capas de má qualidade para estampar o post. Já tentei resolver isto à força de scanner, mas não deu certo. Observe a foto que estampa este post, por exemplo. Péssima! Mas são questões que extrapolam o objetivo desta seção. Ou não. Sei lá. Goût é goût e não se discute.

Que o caroço lhe seja menor do que a polpa

quinta-feira, 7 de maio de 2009


Tem algumas frutas que são como algumas pessoas: econômicas e metódicas. Algumas espécies de azeitona, por exemplo, têm caroços maior do que a polpa quando tudo o que queríamos era somente a polpa, fibrosa, cheia de sabor. Isso se aplica às pessoas que, por dentro, têm uma constituição completa, quase um caroço que lhes toma a polpa. O que sobra é muito pouco para o consumo, digamos, emocional.


Mas entre as pessoas e as frutas, a despeito da economia de umas e outras, afirmo que as frutas são mais generosas porque posso juntá-las e, com o conjunto, fazer bom uso da polpa coletiva. O mesmo não pode ser fazer com as pessoas, infelizmente.


Assim é a ceriguela, ou seriguela, cuja polpa tem apenas 3 milímetros de espessura, com a maior parte da fruta constituída pelo caroço. A seriguela, ao contrário da polpa, é generosa com as denominações: ciruela, purple mombim, spanhish plu, jocote, ciruela mexicana, ciruela huesillo e ciruel. Origina-se do México e de outras regiões da América Central, e se deu bem nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, a ponto de parecer nativa dessas áreas.


A serigueleira (Spondias purpurea) é uma árvore de altura média - 7 metros - cujos ramos se desenvolvem rentes ao chão. As flores dão origem a frutos isolados ou em cachos. Essas frutinhas são de atraente cor e podem ser consumidas in natura. Quando madura, a seriguela vai entre a cor laranja-avermelhada e amarelada. É bastante semelhante ao cajá e, quando não se conhecem ambas, pode se confundir uma com a outra. A diferença é que seriguela é doce, e o cajá não.


Como outras frutas chamadas de exótica, na falta de definição melhor e por conta de um acesso nem sempre fácil, a seriguela é bastante usada para fazer sucos, sorvetes, licores, vinhos, geleias e compotas.


O Ceará, atualmente, é o maior produtor da fruta. Ao contrário da seriguela, no entanto, o cearense, ao menos os que conheço, não são econômicos no que tange à expansão social. Gosto deles, dos cearenses. Da seriguela? Não sei, nunca experimentei. Os cearenses? Ahãn ... 

Pode me faltar tudo na vida ...

quarta-feira, 6 de maio de 2009


"Você pensa que cachaça é água/Cachaça não é água não/Cachaça vem do alambique/Água vem do ribeirão/Pode me faltar tudo na vida/Arroz, feijão e pão/Pode me faltar manteiga/E tudo o mais não faz falta não/Pode me faltar o amor?Disto até acho graça/Só não quero que me falte/A danada da cachaça."


A marchinha "Cachaça", composta em 1953 por Mirabeau Pinheiro, L. de Castro e H. Lobato, é obrigatória em qualquer carnaval que se preze. Lá se vão quase 60 anos de marchinha e a cachaça segue como a bebida que melhor representa o Brasil, assim como o champagne está definitivamente atrelado à França, o scott (whisky ou uísque) à Escócia e a vodca à Rússia.

A cachaça ou pinga, caninha, aguardente (e mais de 130 outras definições segundo o dicionário Aurélio) tem origem nos engenhos de açúcar, no período do Brasil colônia. Por um viés preconceituoso, a cachaça era considerada uma bebida muito popular para ser equiparada a nobres líquidos como o vinho, o conhaque ou o uísque.


O fato de relevar a cachaça à condição de bebida de baixo Leblon ou baixo Augusta (redutos, digamos, mal frequentados), deve-se, como sempre há de ser, às origens da 'marvada': a cachaça começou a nascer na então capitania de São Vicente, num período que varia entre 1532 e 1548 (todos deveriam estar bêbados para registrar o fato com precisão). E começou, como, de novo, há de ser sempre, por acaso: o vinho da cana-de-açúcar, chamado de garapa azeda, que vinha dos tachos de rapadura, ficava ao relento em cochos de madeira dos animais. No dia seguinte, revelava-se em caldo limpo. Esse caldo, chamado a princípio de cagaça, era servido pelos senhores de engenho aos escravos. Do processo manual de decantação à destilação, foi um pulo para se chegar à cachaça, a 'branquinha'.


Os lugares produtores de cachaça eram denominados "casas de cozer méis". Com a crescente importância do destilado, o 'mé' transforma-se em moeda corrente entre os escravos e os engenhos dividem-se entre a produção de açúcar e de cachaça.

A Corte Portuguesa, incomodada com a venda do vinho português, determina o fim da produção da cachaça em 1635 e deixa a ver navios àqueles que, contemporaneamente, apelidamos, carinhosamente, de 'bagaceiras' (pessoas que bebem e não sabem dizer não ou dizem sim ao primeiro sorriso). Bagaceira era também a bebida anterior à cachaça, importada de Portugal, para o consumo das 'bagaceiras' antigas.


Mas, assim como a lei seca que proibia a venda de destilados nos EUA (entre 1920 e 1933) foi um fiasco, também a proibição da Coroa portuguesa mostrou-se ineficaz. Para se ter uma ideia da importância da pinga, em 1756, o aguardente foi um dos maiores contribuintes, sob a forma de impostos, para a reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755. Para tanto, foram vários os impostos criados para a cachaça, lisonjeiramente chamados de subsídios, como o literário, que financiava as faculdades de Portugal. Beber na época, no Brasil, equivalia a colaborar na formação intelectual de Portugal. Quem diria!


Com o passar dos tempos e de coroas, a cachaça evoluiu na escala social. Hoje, é bebida requintada, conforme a procedência, com garrafas que custam tanto ou mais quanto um bom scott escocês. Em 2001, um decreto definiu as expressões "cachaça", "Brasil" e "cachaça do Brasil" como indicações geográficas para efeito de direito de propriedade intelectual. Um decreto posterior, de 2003, normatizou a padronização, registro, inspeção, produção e fiscalização de bebidas, inclusive da cachaça.

Finalmente, a caninha, pinga, cachaça, branquinha, aguardente ou qualquer outro nome que a chame para o copo é nobre. Pode ir à mesa sem fazer feio e, de fato, faz mais do que isso: é o ingrediente número 1 da bebida que simboliza o Brasil, a caipirinha.

Por que estou a falar de cachaça sem mais nem por quê? Porque acabei de beber, cachaça inclusive, e deu vontade de soltar a língua, o cérebro e mais alguma coisa.

A numerosa família das spice girls

terça-feira, 5 de maio de 2009


Chegadas as primeiras naus portuguesas, nos anos de 1500 que longe vão, já aqui os legítimos nativos da terra tinham por hábito a cultura desse condimento que, embora soe indiano e lembre vagamente associações com a famosa Companhia das Índias, estava aqui em solo brasilis, a enfeitar os roçados das tribos.


A pimenta era, pois, cultivada por índios brasileiros desde antanho. Deve-se dizer desse condimento no plural. Pimentas, porque refere a vários condimentos picantes. Variadas, de diversas famílias, com galhos metidos no meio de tantas árvores que cedo nos arvoramos em debates a definir o que é e o que deixa de ser pimenta, afinal.

Teoricamente, classificam-se como pimenta:

- As sementes da família Piperaceae, com destaque para o gênero Piper, que dá origem à pimenta-do-reino (pimenta preta em Portugal e pimenta redonda em Moçambique). Conforme a maturidade e a colheita, mais tardia ou prematura, o grão Piper (Piper nigrum) pode gerar: a pimenta-verde, a pimenta-branca ou a pimenta-do-reino.


- Da família Solanaceae vem o gênero Capsicum, com 27 espécies conhecidas. Há uma classificação estabelecida para essas variedades, a Escala de Scoville, que mede o nível de picância (ou ardor) dessas pimentas todas.


Essa escala consiste em um procedimento de diluição e prova para determinar a ardência da pimenta. As pimentas, em estado puro, são misturas a uma solução de água com açúcar. Quanto mais solução de água e açúcar for necessária para diluir uma pimenta, mais alto será o grau de calor da espécie. A escala compreende as unidades de Scoville, de forma que 1 xícara de pimenta equivale a 1 mil xícaras de água que equivale a 1 unidade na Escala de Scoville. A pimenta em estado bruto e puro (capsaicina) equivale a 15 milhões de unidades Scoville e é assim que se mede o poder da pimenta: a mexicana Habanero mede 300 mil unidades; a Red Savina Habanero mede 577 mil unidades; e a indiana Tezpur mede 877 mil unidades.


Dentre as espécies do gênero Capsicum, destacam-se o pimentão, que não é picante, a malagueta (ou piri-piri, quando em menor dimensão), a caiena (que resulta de mistura com uma determinada variedade de páprica seca), a pimenta calabresa (a popular dedo-de-moça ou, quando com frutos maiores, chifre-de-veado).


- A aroeira produz um fruto que é chamado de pimenta doce.

- A pimenta Szechuan (da espécie Zanthoxylum piperitum)

- E, finalmente, a família Myrtaceae, que produz mais variedades, entre as quais a pimenta da Jamaica (fruto da Pimenta dioica), que lembra o cravo, a canela e a noz-moscada. Pode ser encontrada também sob o nome pimenta all spice.


As pimentas acompanham praticamente qualquer prato na cozinha, inclusive doces. Basta associar o prato à variedade escolhida e pronto: tudo fico mais ardidinho, com um ardor típico. No Brasil, a gastronomia que mais gosta da pimenta é a cozinha baiana, que usa e abusa desse maravilhoso condimento.


A pimenta-do-reino reina literalmente nas casas brasileiras. Tempera saladas, carnes, peixes, molhos e até mesmo preparações de ovos. Eu costumo aspergir uma chuvinha fina de pimenta-do-reino em ovos fritos. As pimentas são consumias cruas, em conserva, secas, em pó ou em sementes moídas na hora. Tanto faz o meio. Os fins justificam os mais diversos usos.

São plantas, na maior parte, extremamente fáceis de ser cultivadas. É possível ter pequenos pés de pimenteira em casa. Ou carregar potes que duram anos. Ou moê-las na hora, fresquinhas. Ou ainda usar as processadas.


A contrário dos velhos mitos populares, a pimenta não faz mal ao organismo. Ao contrário, faz bem. Claro que, como qualquer alimento, tem que ser consumida moderadamente. Meu avô comia uma pequena pimenta malagueta todos os dias, com feijão esmagado, na hora do jantar. Eu sempre tenho algum tipo de pimenta em casa e molhos à base de pimenta e, quando estou com o capeta no corpo, consumo pimentas in natura para soltar fogo pelas ventas e por quaisquer outros poros que você pode imaginar.

Estou cheio de abobrinhas!

segunda-feira, 4 de maio de 2009


Quantas abobrinhas dizemos por dia? Como se converte a palavra boba dita, a besteira, a piada sem nexo em vegetais como abobrinhas? Se diz das pessoas (e de si mesmo/a) que se está a falar abobrinhas quando dizemos coisas à toa, sem importância, que falta não fariam se não-ditas. As palavras são assim: saem fáceis, sem freios, molas e amortecedores. E quanto às abobrinhas, de fato?


A abobrinha (Cucurbita pepo), que tem um lindo nome afrancesado também - courgette - e outro em inglês - zucchini -, é um fruto. Sim! Da mesma família das melancias, melões, pepinos e morangas. E, claro, pertence ao mesmo gênero da abóbora. Ao contrário da maior parte dos frutos, colhem-se as abobrinhas quando verdes. Em idade tenra.


A abobrinha é nativa das Américas - entre o Peru e EUA, e dois tipos são bastante usuais no Brasil: a Menina, que tem pescoço, e a Italiana, sem pescoço. As cores variam um pouco: do verde claro, quase translúcido, ao verde com faixas mais escuras. Também podem ser quase amarelas. Mas não maduras porque abobrinhas são como palavras jogadas ao léu: se demorarem muito para fazer efeito, caem de maduras.


O vegetal apropriado para o consumo tem casca de cor brilhante, com cerca de 20 cm de comprimento. Quanto menores, mais tenras e saborosas são as abobrinhas. Uma dica: a abobrinha com cabo, aquele pequeno rabicó, dura mais tempo.

Assim como as palavras ventiladas ao acaso, sem um fim específico, as abobrinhas são bastante genéricas: podem ser adicionadas a pastas (macarrão), comidas puras, com algum tempero como alho, cebola, pimenta, cheiro verde, azeite, limão e vinagre.


Eu sou daquele tipo que, quando criança (e ainda um bocadinho agora) dizia: "não gosto", mesmo antes de experimentar. Eu costumava não gostar de abobrinha. Mas, agora que sou grandinho, descobri que basta preparar as abobrinhas (e as palavras) com carinho e amor. Temperar com aquele ingrediente secreto que você mais gosta. Com uma pequena lâmina de alho que reluz de tão fina. Com um azeite almiscarado com o toque que mais lhe agrada. Com o sal especial. Uma pimenta branca, ou do-reino, moída na hora.

E, importante: mantenha a casca. Corte em pequenos cubos ou em longas e filetadas varinhas. Mas mantenha a casca. Que tem sabor. Cor. A abobrinha pode ser salteada no azeite, comida com saladas frias, fazer bonito como suflê de abobrinha, ser frita à moda milanesa, ser recheada como se faz com a beringela, ser degustada com queijos, ovos e carnes.


Faça com a abobrinha o que deve ser feito com as palavras: trate-a com delicadeza. É um fruto sensível, colhido na mais tenra idade para propiciar prazer. Prazer que algumas palavras, quando ditas da melhor forma, também têm o dom de proporcionar. Não diga abobrinhas. Faça-as. Cuide dos frutos e das palavras. Gastronomia e gramática, unidas, são invencíveis.

Vintage

domingo, 3 de maio de 2009


Maíz, em espanhol, significa milho. Havia, nas Américas - do Sul, Central e do Norte - várias denominações para o cereal. Mas, quando Cristóvão Colombo levou dos EUA para a Espanha o milho, os espanhóis acharam por bem usar o mesmo termo - maíz - empregado pelas tribos sioux e iroquês para definir o milho.


De forma que a Maizena vem de maíz. Simples assim! A embalagem, amarela, remete aos grãos e a ilustração da tradicional caixinha, feita com bico-de-pena, exibe uma tribo norte-americana no processo de extração do amido pelos ancestrais dos nativos norte-americanos.

A Maizena Duryea, que deu origem ao substantivo 'maisena' (amido de milho) começou a ser vendida no Brasil em 1874. Tem, portanto, 135 anos de história no País. Em 1842, Thomas Kingsford, funcionário de uma refinaria de milho, tentava encontrar uma fórmula para simplificar a extração do amido de milho. Com o sucesso obtido, abriu uma fábrica e passou a produzir a farinha com tecnologia própria. No entanto, o processo ainda era precário e o amido de Kingsford servia somente para as indústrias de goma.

Em 1854, Wright Duryea, que trabalhava na fábrica de Kingsford, pediu as contas e abriu a Fábrica de Amido Rio Oswego. Depois, criou a Companhia Produtora de Amido Duryea. Já na época, o carro-chefe da empresa era a Maizena, para fins culinários. Mas, o uso maior era na lavanderia, para engomar roupas.

Em 1906, as empresas de Duryea e Kingsford se consolidaram e formaram o grupo Corn Products Refining Company. Depois, virou Corn Products Company (CPC). Finalmente, o CPC foi adquirido pela Unilever, que detém, atualmente, a marca Maizena.

Quando a Maizena chegou ao Brasil, em 1874, produtos como arroz e feijão eram, basicamente, vendidos a granel. Não havia o hábito de se vender produtos embalados em caixas ou em qualquer outro tipo de recipiente. A chegada da caixinha amarela de Maizena foi, portanto, um marco. O amido era usado para fazer mingau (e o é até hoje), engrossava caldos, substituía, em alguns casos, a farinha de trigo e, na falta de goma, servia para engomar as roupas.

Até 1927, a Maizena era produzida nos EUA e apenas embalada no Brasil. Em 1930, o engenheiro L.E.Miner, representante da CPC, abriu no País a Refinações de Milho Brasil (RMB), subsidiária da proprietária da marca. Desde então, a Maizena é produzida no Brasil.

Com a aquisição da CPC pela Unilever, também as subsidiárias como a RMB foram compradas pela multinacional norte-americana. A Maizena, no entanto, permanece como marca líder do mercado e disseminou o substantivo 'maisena', que designa todas as demais marcas de amido de milho existentes.

Do meu contato com a Maizena, que vem de tempos imemoriais (me refiro à poética do termo 'imemoriais', e não do percurso do tempo), me recordo sempre do amarelo da caixinha, do amarelo do creme de laranja feito às pressas em precários fogõezinhos de três tijolos. Era uma tradição diária em casa, entre meus irmãos e eu. Todo dia, toda tarde, tinha creme de laranja feito com suco de laranja, Maizena e açúcar. Tempo bom por demais!

The book is under the table

sábado, 2 de maio de 2009


Tenho um grande volume, há muito tempo, que destrincha de forma simples mais de 1,5 mil receitas. São quase 900 páginas sobre tudo o que põe à mesa: antepastos, aves, arroz, batidas, coquetéis, sucos, bolos, carne, chocolate, doces caseiros, docinhos, farinhas, farofas, grãos, legumes, leite e derivados, macarrão, massas, molhos, ovos, pães e biscoitos, peixes e frutos do mar, salgadinhos, sanduíches, sobremesas, sopas, cremes, caldos, sorvetes (e sorbets), tortas e verduras.


Está tudo aqui, num volume que consolida 40 anos de receitas publicadas pela revista Claudia. Tudo foi criado, desenvolvido, testado e aprovado pela Cozinha Experimental de Claudia, que é referência no Brasil.

Escrevo sobre "O Grande Livro de Receitas de Claudia" - Editora Abril - 881 páginas - 1ª. edição - São Paulo, 2000. Tenho o livro desde 2001 e lhe asseguro que, se você não souber nada além de ligar a chama do fogão, poderá fazer, apenas com o receituário extenso, verdadeiros banquetes. A edição cuja foto estampa este post é mais recente, de 2008, e tem 3.149 receitas, ou seja, mais do que o dobro da edição de que disponho.

As primeiras receitas da revista Claudia foram publicadas em 1961. Isso significa que os pratos que atravessam e carregam de peso o livro contam histórias, por meio da cozinha, de algumas gerações de cozinheiras e, mais recentemente, de cozinheiros.

É comum em todos os países que haja um tradicional livro-mestre sobre gastronomia. Isso acontece na Europa e nos EUA. Eu já li alguns desses livros-guia e garanto que é possível extrair muito da progressão histórica apenas por pequenas pistas que se encontram no emaranhado de receitas.

Porque livros são como florestas: existem trilhas, clareiras, sombras, mata cerrada, árvores e plantas que confundem e ocultam as passagens. Há que contornar e aprender a floresta, respirar no seu tempo e respeitá-la. Assim o é com o livro. Quando você entra em sintonia com a natureza, o labirinto se dissolve.

Eu gosto de pescar os pequenos peixes de livros/florestas. São iscas, talvez, para você ser içado(a). Mas, quem se importa quando a isca é generosa? Este livro me cria uma sensação de conforto, similar àquela que o calor do fogão de lenha proporcionava. Talvez porque me remeta, em algum recanto de sua frondosa floresta, a um período anterior às chamas azuladas que pouco iluminam as cozinhas de agora.