Aquela que se come em lugar do pão

terça-feira, 19 de maio de 2009


Escrita por Pero de Magalhães Gândavo em 1576, a "História da Província de Santa Cruz" versa sobre um Eldorado que, nos primórdios da conquista portuguesa, ainda nem Brasil era, embora lhe quisessem "vulgarmente" chamar Brasil.

Pois, entre o nome nobre e o vulgo nickname, a terra que viria ser, afinal, Brasil, despertou aos olhos do estrangeiro em discurso exclamativo que viu brotar, imperial, com raízes firmes que, como a nascente nação, se mais apegam ao chão quanto tanto a tentamos arrancar do doce solo.

E eis que o fálico símbolo enraizado que faz brotar das profundas o caule aparentemente frágil e se põe em pé, feito soldado de territórios guardião, em fileiras simétricas, embora não compostas pela mão racional europeia que chegava.

Era a primeira impressão. E se primeira é a impressão que fica, ficou tal que a mandioca marcou indelevelmente que a terra era nostra, de raiz e de propriedade, dos ancestrais índios, selvagens primitivos a pintar o corpo por qualquer dá cá aquela palha.

E assim que marco ficou da gastronomia brasileira a mandioca a primeira. A merecer loas em arcaico português quinhentista e a tingir em papel timbrado da Coroa o primeiro registro do nativo fruto da terra. A mandioca indígena, pois, alçada à condição, enfim, de ingrediente.

E com esse texto em hieróglifos rebuscados, resgato a história da mandioca. Ainda que o texto antigo seja, não lhe é o sentido. Como verás, se bravo(a) for, leitor(a) meu(minha), a decifrar o pergaminho que descansa nos anais lá do lado de lá do Atlântico:


"São tantas e tam diversas as plantas, fruitas, e hervas que ha nesta Provincia, de que se podiam notar muitas particularidades, que seria cousa infinita escreve-las aqui todas, e dar noticia dos effectos de cada huma meudamente. E por isso nem farei agora mençam sinam de algumas em particular, principalmente daquellas de cuja virtude e fruito Participão os Portuguezes.

Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós: quando a querem plantar em alguma roça cortão-na e fazem-na em pedacos, os quaes metem debaixo da terra, depois de cultivada, como estacas, e dahi tornaõ arrebentar outras plantas de novo: e cada estaca destas cria tres ou quatro raizes e dahi pera cima (segundo a virtude da terra em que se planta) as quaes põem nove ou dez meses em se criar: salvo em Sam Vicente que põem tres annos por causa da terra ser mais fria.

Estas raizes a cabo deste tempo se fazem mui grandes á maneira de Inhames de S. Thomé, ainda que as mais dellas sam compridas e revoltas de feição de corno de boi. E depois de criadas desta maneira si logo as nam querem arrancar pera comer, cortam-lhe a planta pelo pé, e assi estão estas raizes cinco, seis meses debaixo da terra em sua perfeicão sem se danarem: e em Sam Vicente se conservam vinte, e trinta annos da mesma maneira. E tanto que as arrancão põem-na a curtir em agoa três quatro dias, e depois de curtidas, pizão-nas muito bem.

Feito isto metem aquella massa em humas mangas compridas e estreitas que fazem de humas vergas delgadas, tecidas á maneira de cesto: e ali a espremem daquelle súmo da maneira que nam fique delle nenhuma cousa por esgotar: porque he tam peçonhento e em tanto extremo venenoso, que si huma pessoa ou qualquer outro animal o beber, logo naquelle instante morrerá.

E depois de assi a terem curada desta maneira põem hum alguidar sobre o fogo em que a lanção, a qual está mexendo huma India até que o mesmo fogo lhe acabe de gastar aquella humidade e fique enxuta e disposta pera se poder comer que será por espaço de meia hora pouco mais ou menos.

Este he o mantimento a que chamão farinha de páo, com que os moradores e gentio desta Provincia se mantém. Ha todavia farinha de duas maneiras: huma se chama de guerra e outra fresca. A de guerra se faz desta mesma raiz, e depois de feita fica muito seca e torrada de maneira que dura mais de hum anno sem se danar. A fresca he mais mimosa e de melhor gosto: mas nam dura mais que dous ou tres dias, e como passa delles, logo se corrompe. Desta mesma mandioca, fazem outra maneira de mantimentos que se chamão beijús, os quaes sam de feição de obreas, mas mais grossos e alvos, e alguns delles estendidos da feição de filhós. Destes uzam muito os moradores da terra, principalmente os da Bahia de Todos os Santos, porque são mais saborosos e de melhor disistão que a farinha.

Tambem ha outra casta de mandioca que tem differente propriedade desta, a que por outro nome chamão aipim, da qual fazem huns bôlos em algumas Capitanias que parecem no sabor que excedem a pão fresco deste Reino. O sumo desta raiz nam he peçonhento como o que sae da outra, nem faz mal a nenhuma cousa ainda que se beba. Tambem se come a mesma raiz assada como batata ou inhame: porque de toda maneira se acha nella mu ito gosto. Além deste mantimento, ha na terra muito milho zaburro de que se faz pão muito alvo, e muito arroz, e muitas favas de differentes castas, e outros muitos legumes que abastão muito a terra.

Huma planta se da támbem nesta Provincia, que foi da ilha de Sam Thomé, com a fruita da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta he mui tenra e nam muito alta, nam tem ramos senam humas folhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita della se chama bananas. Parecem-se na feição com pepinos, e crião-se em cachos: alguns delles ha tam grandes que tem de cento e cincoenta bananas pera cima, e muitas vezes he tamanho o peso della que acontece quebrar a planta pelo meio. Como são de vez colhem estes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. Depois de colhidos cortão esta planta porque nam frutifica mais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer della huns filhos que brotam do mesmo pé, de se fazem outros semelhantes.

Esta fruita he mui sabrosa, e das boas, que ha na terra: tem huma pelle como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lanção fora quando a querem comer: mas faz dano á saude e causa fevre a quem se desmanda nella. Humas arvores ha tambem nestas partes mui altas a que chamão Zabucáes: nas quaes se criam huns vasos tamanhos como grandes cocos, quasi da feição de jarras da India. Estes vasos são mui duros em gram maneira, e estão cheios de humas castanhas muito doces, e saborosas em extremo: e tem as bocas pera baixo cubertas com humas sapadoiras que parece realmente nam serem assi criadas da natureza, senam feitas por artificio de industria humana.

E tanto que as taes castanhas são maduras caem estas sapadoiras e dali começam as mesmas castanhas tambem a cahir pouco a pouco, até nam ficar nenhuma dentro dos vasos.

Outra fruita ha nesta terra muito melhor, e mais prezada dos moradores de todas, que se cria em huma planta humilde junto do chão: a qual planta tem humas pencas como de herva babosa.

A esta fruita chamão Ananazes, e nascem como alcachofres, os quaes parecem naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho, e alguns maiores. Depois que são maduros, tem hum cheiro mui suave e comem-se aparados feitos em talhadas. São tam sabrosos, que a juizo de todos nam ha fruita neste Reino que no gosto lhes faça vantagem, e assi fazem os moradores por elles mais, e os tem em maior estima que outro nenhum pomo que haja na terra.

Ha outra fruita que nasce pelo mato em humas arvores tamanhas como pereiras, ou macieiras: a qual he de feição de peros repinaldos, e muito amarella. A esta fruita chamão cajús: tem muito sumo, e come-se pela calma pera refrescar, porque he ella de sua natureza muito fria, e de maravilha faz mal, ainda que se desmandem nella. Na ponta de cada pomo destes se cria hum caroço tamanho como castanha, da feição de fava: o qual nasce primeiro, e vem diante da mesma fruita como flôr; a casca delle he muito amargosa em extremo, e o meolo assado he muito quente de sua propriedade e mais gostoso que a amendoa.

Outras muitas fruitas ha nesta Provincia de diversas qualidades comuns a todos, e são tantas que já se acharão pela terra dentro algumas pessoas as quaes se sustentavão com ellas muitos dias sem outro mantimento algum. Estas que aqui escrevo, são as que os portuguezes têm entre si em mais estima, e as melhores da terra.

Algumas deste Reino se dão tambem nestas partes, convem a saber, muitos melões, pepinos, romãs e figos de muitas castas; muitas parreiras que dão uvas duas, tres vezes no anno, e de toda outra fruita da terra ha sempre a mesma abundancia por causa de não haver la (como digo) frios, que lhes fação nenhum prijuizo. De cidras, limões, e laranjas ha muita infinidade, porque se dão muito na terra estas arvores de espinho, e multiplicão mais que as outras.

Além das plantas que produzem de si estas fruitas, e mantimentos que na terra se comem, ha outras de que os moradores fazem suas fazendas, convém a saber, muitas canas de açucar, e algodoaes, que he a principal fazenda que ha nestas partes, de que todos se ajudão e fazem muito proveito em cada huma destas Capitanias, especialmente na de Pernambuco que são feitos perto de trinta engenhos, e na Bahia do Salvador quasi outros tantos, donde se tira cada hum anno grande quantidade de açucares, e se dá infinito algodam, e mais sem comparaçam que em nenhumas das outras. Tambem ha muito páo brasil nestas Capitanias de que os mesmos moradores alcanção grande proveito: o qual páo se mostra claro ser produzido da quentura do Sol, e criado com a influencia de seus raios, porque nam se acha sinam debaixo da torrida Zona, e assi quando mais perto está da linha Equinocial, tanto he mais fino e de melhor tinta; e esta he a causa porque o nam ha na Capitania de Sam Vicente nem dahi pera o Sul.

Hum certo genero de arvores ha tambem pelo mato dentro na Capitania de Pernambuco a que chamam Copahibas de que se tira balsamo mui salutifero e proveitoso em extremo, para enfermidades de muitas maneiras, principalmente as que procedem da frialdade: causa grandes effeitos, e tira todas as dores por graves que sejam em muito breve espaço. Pera feridas ou quaesquer outras chagas, tem a mesma virtude, as quaes tanto que com elle lhe acodem, sáram mui depressa, e tira os signaes de maneira, que de maravilha se enxerga onde estiverão e nisto faz vantagem a todas as outras medicinas.

Este oleo nam se acha todo o anno perfeitamente nestas arvores, nem procuram ir busca-lo senam no estio que he o tempo em que asinaladamente o criam. E quando querem tira-lo dão certos golpes ou furos no tronco dellas pelos quaes pouco a pouco estão estilando do amago este licor precioso. Porém nam se acha em todas estas arvores sinam em algumas a que por este respeito dão o nome de femea, e as outras que carecem delle chamão machos, e nisto sómente se conhece a differença destes dous generos, que na proporçam e semelhança nam differe nada humas das outras. As mais dellas se achão roçadas dos animaes, que por instinto natural quando se sentem feridos ou mordidos de alguma fera as vão buscar pera remedio de suas enfermidades.

Outras arvores differentes destas ha na Capitania dos llhéos, e na do Spirito Santo a que chamão Caborahibas, de que tambem se tira outro balsamo: o qual sae da casca da mesma arvore, e cheira suavissimamente. Tambem aproveita para as mesmas enfermidades, e aquelles que o alcanção tem-no em grande estima e vendem-no por muito preço, porque além de as taes arvores serem poucas correm muito risco as pessoas que o vão buscar, por causa dos inimigos que andam sempre naquella parte emboscados pelo mato e não perdoão a quantos achão.

Tambem ha huma certa arvore na Capitania de Sam Vicente, que se diz pela lingoa dos lndios "Obirá paramaçaci", que quer dizer páo para enfermidades: com o leite da qual sómente com tres gotas, purga huma pessoa por baixo e por cima grandemente. E si tomar quantidade de huma casca de noz, morrerá sem nenhuma remissam. De outras plantas e hervas que nam dão fruito nem se sabe o pera que prestam, se podia escrever, de que aqui nam faço mençam, porque meu intento nam foy sinam dar noticia (como já disse) destas de cujo fruito se aproveitão os moradores da terra. Somente tratarei de huma mui notavel, cuja qualidade sabida creio que em toda parte causará grande espanto.

Chama-se herva viva, e tem alguma semelhança de silvam macho. Quando alguem lhe toca com as mãos, ou com qualquer outra cousa que seja, naquelle momento se encolhe e murcha de maneira que parece criatura sensitiva que se anoja, e recebe escandalo com aquelle tocamento. E depois que assossega, como cousa já esquecida deste agravo, torna logo pouco a pouco a estender-se até ficar outra vez tam robusta e verde como dantes. Esta planta deve ter alguma virtude mui grande, a nós enconberta, cujo effeto nam será pela ventura de menos admiraçam. Porque sabemos de todas as hervas que Deos criou, ter cada huma particular virtude com que fizessem diversas operações naquellas cousas pera cuja utilidade foram criadas e quanto mais esta a que a natureza nisto tanto quiz assinalar dando-lhe hum tam estranho ser e differente de todas as outras."

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