"Você pensa que cachaça é água/Cachaça não é água não/Cachaça vem do alambique/Água vem do ribeirão/Pode me faltar tudo na vida/Arroz, feijão e pão/Pode me faltar manteiga/E tudo o mais não faz falta não/Pode me faltar o amor?Disto até acho graça/Só não quero que me falte/A danada da cachaça."
A marchinha "Cachaça", composta em 1953 por Mirabeau Pinheiro, L. de Castro e H. Lobato, é obrigatória em qualquer carnaval que se preze. Lá se vão quase 60 anos de marchinha e a cachaça segue como a bebida que melhor representa o Brasil, assim como o champagne está definitivamente atrelado à França, o scott (whisky ou uísque) à Escócia e a vodca à Rússia.
A cachaça ou pinga, caninha, aguardente (e mais de 130 outras definições segundo o dicionário Aurélio) tem origem nos engenhos de açúcar, no período do Brasil colônia. Por um viés preconceituoso, a cachaça era considerada uma bebida muito popular para ser equiparada a nobres líquidos como o vinho, o conhaque ou o uísque.
O fato de relevar a cachaça à condição de bebida de baixo Leblon ou baixo Augusta (redutos, digamos, mal frequentados), deve-se, como sempre há de ser, às origens da 'marvada': a cachaça começou a nascer na então capitania de São Vicente, num período que varia entre 1532 e 1548 (todos deveriam estar bêbados para registrar o fato com precisão). E começou, como, de novo, há de ser sempre, por acaso: o vinho da cana-de-açúcar, chamado de garapa azeda, que vinha dos tachos de rapadura, ficava ao relento em cochos de madeira dos animais. No dia seguinte, revelava-se em caldo limpo. Esse caldo, chamado a princípio de cagaça, era servido pelos senhores de engenho aos escravos. Do processo manual de decantação à destilação, foi um pulo para se chegar à cachaça, a 'branquinha'.
Os lugares produtores de cachaça eram denominados "casas de cozer méis". Com a crescente importância do destilado, o 'mé' transforma-se em moeda corrente entre os escravos e os engenhos dividem-se entre a produção de açúcar e de cachaça.
A Corte Portuguesa, incomodada com a venda do vinho português, determina o fim da produção da cachaça em 1635 e deixa a ver navios àqueles que, contemporaneamente, apelidamos, carinhosamente, de 'bagaceiras' (pessoas que bebem e não sabem dizer não ou dizem sim ao primeiro sorriso). Bagaceira era também a bebida anterior à cachaça, importada de Portugal, para o consumo das 'bagaceiras' antigas.
Mas, assim como a lei seca que proibia a venda de destilados nos EUA (entre 1920 e 1933) foi um fiasco, também a proibição da Coroa portuguesa mostrou-se ineficaz. Para se ter uma ideia da importância da pinga, em 1756, o aguardente foi um dos maiores contribuintes, sob a forma de impostos, para a reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755. Para tanto, foram vários os impostos criados para a cachaça, lisonjeiramente chamados de subsídios, como o literário, que financiava as faculdades de Portugal. Beber na época, no Brasil, equivalia a colaborar na formação intelectual de Portugal. Quem diria!
Com o passar dos tempos e de coroas, a cachaça evoluiu na escala social. Hoje, é bebida requintada, conforme a procedência, com garrafas que custam tanto ou mais quanto um bom scott escocês. Em 2001, um decreto definiu as expressões "cachaça", "Brasil" e "cachaça do Brasil" como indicações geográficas para efeito de direito de propriedade intelectual. Um decreto posterior, de 2003, normatizou a padronização, registro, inspeção, produção e fiscalização de bebidas, inclusive da cachaça.
Finalmente, a caninha, pinga, cachaça, branquinha, aguardente ou qualquer outro nome que a chame para o copo é nobre. Pode ir à mesa sem fazer feio e, de fato, faz mais do que isso: é o ingrediente número 1 da bebida que simboliza o Brasil, a caipirinha.
Por que estou a falar de cachaça sem mais nem por quê? Porque acabei de beber, cachaça inclusive, e deu vontade de soltar a língua, o cérebro e mais alguma coisa.
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