"O Jardim das Delícias Terrenas" é um esplendoroso tríptico (três painéis), pintado por Hieronymus Bosch, que descreve a história do mundo a partir da criação na parte central (que seria o verdadeiro paraíso) e apresenta o Éden (paraíso celestial) à esquerda e o inferno à direita. Especula-se bastante a respeito da data em que as telas foram feitas e os levantamentos divergem entre 1480 a 1515. Não importa. Esse período compreende, na datação ocidental, à época mais negra e obscura da história, a Idade Média, cujas iniciativas em qualquer área eram reprimidas o bastante para que artistas ousassem sair do convencional.
Mas Bosch ousou: o centro do tríptico celebra os prazeres da carne, com símbolos e atividades em carnaval (na acepção de festa da carne), uma verdadeira celebração do amor livre em plena era de exacerbada atuação contra os excessos, sobretudo os do sexo. Me parece bastante apropriado fazer a conexão entre o "Jardim das Delícias" de Bosch com o meu próprio jardim das delícias neste blog.
Embora eu me restrinja ao reino vegetal, o jardim a que me refiro trata-se de uma luxuriosa e exuberante combinação de cores que (acho) remete ao colorido de vida de Bosch. Falo sobre as flores comestíveis que migraram dos arranjos de centro de mesa para os pratos da mesma mesa. Come-se flores. E, portanto, da vida (das flores) à vida (dos humanos), volto à diversidade provocativa de Bosch que entendeu há mais de 500 anos que a vida é feita de cor, liberdade e alegria e por que não o fazê-lo, também, por meio do alimento que se ingere?
Não sei se forcei a interação entre Bosch e as flores comestíveis mas, como gosto muito do pintor, prefiro fazer essa referência a ir beber em outra fonte, "As Flores do Mal", de Baudelaire, que não fariam justiça nenhuma às flores que alimentam, dado que são flores do bem, em oposição maniqueísta ao autor.
O consumo de flores nas refeições não é exatamente um exotismo: nos alimentamos de flores o tempo todo e, por vezes, nem nos damos conta disso. São flores, por exemplo, o brócolis, a couve-flor e alcachofra. Mas, para compor o jardim das delícias, preciso de cores, de uma paleta que comporte um espectro inteiro de cores que não se limitem ao verde do brócolis, ao branco da couve-flor e ao verde-roxo da alcachofra. Mas, cuidado: por favor, não coma as flores dos arranjos de mesa como o fez a Hebe Camargo de certa feita. Arranjos continuam a ser arranjos e as flores comestíveis serão servidas no prato, como há de ser.
E, munido dessa paleta, planto no meu jardim as mais diversas espécies:
- Amor-perfeito (Viola arvensis): as pétalas têm sabor adocicado leve e a flor completa é ligeiramente ácida.
- Boca-de-leão (Anthirrinum majus): o sabor varia entre o suave e o ligeiramente amargo e pode ser usada tanto como guarnição quanto como adorno de produções.
- Calêndula (Calendula officinalis): o sabor, algo amargo, lembra vagamente o açafrão e as pétalas dão um aspecto dourado aos pratos. O sabor é picante e a flor pode ser usada também como corante.
- Camomila (Matricaria chamomilla): bastante apreciada em chás, o inusual da camomila é que suas flores têm pétalas comestíveis com sabor idêntico ao de maçãs doces. Mas somente as pétalas são comestíveis. O pólen da flor pode causar alergias se consumido.
- Capuchinha (Tropaeolum majus): a flor tem sabor semelhante ao do agrião. É uma das flores comestíveis mais populares.
- Cravina (Dianthus chinensis): o sabor é apimentado, próximo de especiarias como o cravo-da-índia (a flor é da mesma família dos cravos). Da pétala, deve-se retirar a parte branca e amarga da base antes de consumi-la. As pétalas dessa flor são um dos ingredientes do licor francês Chartreuse, feito pelos monges da cidade de Grenoble, e cujo segredo de fabricação é mantido a sete chaves.
- Cravo túnico (Tagetes patula): com sabor levemente amargo, as pétalas das flores que têm cor amarelo-limão e tangerina são as mais procuradas.
- Gerânio (Pelargonium hortorum): o sabor varia entre o gosto do limão e da menta.
- Girassol (Helianthus annus): outro pintor, Van Gogh, encantou-se tanto com a flor que um dos seus quadros mais famosos é "Os Girassóis". Do girassol, aproveitam-se apenas as pétalas, com sabor agridoce, para consumir. Também o pólen da flor pode causar reações alérgicas.
- Petúnia (Petunia x hybrida): o sabor das pétalas é floral, suave, e a flor pode ser usada como guarnição.
- Prímula (Primula acaulis): as pétalas são de sabor suave e adocicado.
- Violeta (Viola odorata): o sabor das pétalas é doce e perfumado e podem ser consumidas tanto frescas quanto cristalizadas em açúcar.
E com essa dúzia de diferentes flores, creio que terei um dos jardins mais coloridos possíveis. À mesa, lindas, delicadas, usadas nas mais diversas produções, do doce ao salgado, do levemente ácido ao amargo, do picante ao suave. Estou ou não certo em comparar essas maravilhas com a mensagem de vida de Bosch? Se soa exagerado, quero apenas reafirmar que Bosch celebrou a vida (e não a vulgaridade). Por que não dar um colorido neste outono e fazer de conta que, pelo menos na mesa, é primavera? Você gostou do meu jardim das delícias?
Para encerrar esse cultivo que muito me agrada, posto aqui uma flor que deu o ar da graça neste outono no meu apartamento. Moro próximo da Avenida Paulista e ainda me surpreende que as plantas reajam assim, lindas, com tanta poluição e ruído ao redor. Ganhei a planta e, em apenas dois meses, a mudinha fez o círculo completo, da germinação à flor. Não sou do tipo que fala com plantas para longas sessões de análise e psicologia floral.
Confesso, entretanto, que intimamente as ameaço, as minhas plantas (tenho várias) com pronta deportação caso não produzam folhagens vistosas e ramas potentes. Essa flor que desabrochou indiferente ao ambiente que a cerca tem o formato de um cachimbo. Não sou conhecedor de plantas. Mas acho que é da família das gesneriáceas, algum tipo de gloxínia, também chamadas popularmente de cachimbo. Não sei se foram meus pensamentos maldosos mas a flor está linda. Deve ser porque nasci no dia do agricultor. E, não, essa flor não é comestível ou não estaria mais entre nós, a gozar de tanta atenção.
Comments
6 Responses to “O jardim das delícias”
Post a Comment | Postar comentários (Atom)
Sabe que nunca me passou pela cabeca comer uma flor, talvez pq eu adore o meu jardim...rsrsrs
5 de junho de 2009 às 20:46mas fiquei curiosa com a Cravina (acho que esse era o nome).
Abracos
Oi Ana! Eu já comi na faculdade e em um restaurante e gostei. E tem omelete com flor de abóbora que é bem gostoso também. E a maravilhosa geleia de violeta, tão delicada quanto a própria flor. Abraço!
5 de junho de 2009 às 20:52Siempre me ha encantado este cuadro del Bosco. Cuando yo estaba en el instituto recuerdo que pasaba mucho tiempo mirándolo , y siempre encontraba algún detalle que no había percibido en días anteriores.
9 de junho de 2009 às 13:33En cuanto a tu jardín particular , yo sí he probado alguna que otra flor , en postres o ensaladas y la verdad que aparte de dar un toque de color a ese plato , están buenas.
Saluditos desde España.
Victory, a mim también me encanta este trabajo siempre, especialmente por la audacia y vivacidad de un imaginario sin prejuicios. Y las flores en los platos estan a servir de decoración más que de sabor, este es un hecho. Pero que lo son hermosas en los jardines o en las tablas esto sí. Gracias por visitarme. Sea bienvenida. Besos.
9 de junho de 2009 às 23:30Eu conheço a flor por "sapatinho"! A minha mãe é fá...daí eu saber estas coisas! Lol Gostei do blog!
29 de setembro de 2009 às 16:53Sandra, por isso que eu gosto das coisas brasileiras: nós temos os nomes os mais variados para algumas espécies que variam conforme o conhecimento, a região ou a família de cada um de nós. Obrigado pela visita e sem bem-vinda. Beijo!
30 de setembro de 2009 às 01:36Postar um comentário