De grão em grão, se faz o sharkara

sexta-feira, 12 de junho de 2009


Presume-se que no dia de hoje - 12 de junho, Dia dos Namorados - os movimentos, assim como as comidas, as pessoas e as atitudes, devem ter algo de doce, posto que um dia no qual se celebra algo tão fluido quanto o amor tem que carregar no seu bojo um aroma de mel, um cheiro de iguaria, uma pitada de condimento que dê ao próprio sentimento envolvido - paixão - uma cor, um sabor, uma textura de amante.


Se as almas e corpos celebram-se (os que os têm, os pares) neste dia, mal não fica fazer da comida uma transliteração para o prato: do sabor, que deve ser perfumado, ao paladar, que deve conter açúcares os mais diversos e até mesmo a textura, da pele do(a) amante e do prato, que devem estar naquele exato ponto onde o toque final beira quase a insanidade, de tanto esforço despendido na busca do prazer (os corpos dos amantes) quanto na procura da perfeição (entre os ingredientes e o chef, tal qual dois amantes).


Pois se assim é, assim tratarei esse dia: a açúcar. O vocábulo tem origem antiga, tal qual o mundo, que se divide em doce e amargo: surgiu do sânscrito "sharkara" (grão, areia grossa). Para o português, a tradução veio do árabe "al zukkar". E, para quem não sabe, o açúcar é um tempero. Ué! O sal também é um tempero. Logo, natural que se adoce ou salgue a comida com os respectivos temperos. Obtém-se o açúcar a partir da beterraba (forma mais arcaica) e da cana-de-açúcar. A forma mais comum de açúcar é a sacarose, sólida ou cristal.


Mas há vários tipos de açúcares: glicose, frutose, galactose, manose, pentose, ribose, maltose, lactose, rafinose, amido e glicogênio. A sacarose gera várias formas de açúcares: o mascavo (ou bruto), que é algo petrificado, de uma cor que varia entre o caramelo e o marrom e é resultado da cristalização do mel-de-engenho (quase melaço); demerara, que é granulado, de cor amarela, e consiste na purgação (purificação) do mascavo; refinado granulado, que já é um produto puro, sem corantes, sem umidade ou empedramento e com cristais bem definidos, mais usado por confeiteiros; refinado amorfo, de dissolução rápida, fino e branco, para uso doméstico em bolos, confeitos e caldas; glaçúcar, ou popularmente chamado de "açúcar de confeiteiro", cujos grânulos são bem finos e cristalinos - a produção é feita diretamente nas usinas -, que tem uso mais apropriado na indústria, para fazer massas, confeitos, biscoitos e bebidas; xarope invertido, ou açúcar líquido, para frutas em calda, balas, caramelos, licores, geleias, biscoitos e bebidas; xarope simples, para bebidas, balas e doces; e açúcar orgânico, o qual a maior característica é a ausência de aditivos, o que resulta em cor clara ou dourada.


No Brasil, o ápice do ciclo da cana-de-açúcar ocorreu na época da colônia (entre os séculos XVI e XVII). Ainda assim, o País é o maior produtor e exportador mundial de açúcar de cana. Os tipos exportados são o refinado, o cristal e o demerara.


Com tanta brancura doce a nos cercar, era de se esperar que fossemos mais doces, os brasileiros, do que o somos, aparentemente. Ou então o somos, sim, mais doces do que os demais habitantes do planeta: nosso consumo médio é de 52 quilos por pessoa/ano, enquanto o resto do mundo contenta-se com 22 quilos por pessoa/ano, ou menos da metade. Será que isso explica em algum patamar sociológico a docilidade desse povo brasileiro ante tantos descalabros? Ou nossa afinidade eletiva (e nunca seletiva) com todas as demais pessoas, na média?


Portanto, que o dia lhe seja doce, cheio desse branco véu que, em aspersão, mais parece um chuvisco de neve. Em cocção, vai do branco ao dourado, com matizes os mais vários. Apega-se bem aos pratos, e não desanda a destemperar nada. Ao contrário, em situações de emergência, recomenda-se, sempre e antes de tudo, que se tome um copo d'água com açúcar.


E não há que se deixar de admirar as pessoas que fazem doces - artesanal ou profissionalmente -, pois que estão a compartilhar a doçura, sua própria e do ingrediente em si, para os outros. Uma pitada a mais e se tem aquela caldinha que desenha um vinco de sorriso; uma esfregadinha dos grãos na broa, na rosca, sobre o cural, na salada de frutas, me dá cá uma colherzinha mais para o café e tudo se adoça, se acalma.


Por desencontro entre eras tecnológicas, não presenciei o funcionamento de um engenho. Pois que se fazia açúcar bruto em casa mesmo. Cheguei a tempo de ver funcionar a máquina que faz a garapa que, em cosida, gera o melaço e daí a rapadura, da qual se diz "que é doce mas não é mole, não".

Pois que por certo são as pessoas, lá nos seus íntimos, a serem doces porém não moles, pelo menos ao primeiro contato que, depois de um esfrega aqui e uma alisadinha ali, se desmancham, sim, doces que não se adivinhavam nas cascas. Deve ser, repito, a quantidade de açúcar ingerido. Ao mais amargo dos seres lhe emergirá, em algum momento, a necessidade de reduzir o açodamento e também adocicar o fel da vida.

Comments

4 Responses to “De grão em grão, se faz o sharkara”
Post a Comment | Postar comentários (Atom)

Anônimo disse...

Genial seu blog. É difícil encontrar uma fonte de informação sobre a cozinha de terroir na internet que seja assim, sólida, construtiva e de, certa forma, definitiva. tenho tentado escrever também sobre terroir e sazonalidade, mas depois de ler suas matérias, vi que tenho que comer muito arroz com feijão ainda! Sucesso!

12 de junho de 2009 às 11:57
Redneck disse...

Oi Klaus, obrigado! Discordo de você: nada é definitivo, basta um outro, como você, agregar e pronto! De fato, acho que as informações aqui são incipientes ainda, precisam ser melhoradas. Eu tenho buscado mais referências mas, assim como na internet, também outras fontes sobre o terroir, em geral, e sobre o terreiroir, em particular, são bastante reduzidas. Pois te convido a comer feijão e arroz comigo nessa jornada. Valeu a visita e te desejo sucesso também. Abraço!

13 de junho de 2009 às 01:36
Anônimo disse...

Depois de ficar com agua na boca de tanto pudim , você vem me matar com tanta doçura, coitada da diabetica...
Estou achando incrivel mesmo é tua forma de escrever...Parabens!!

23 de junho de 2010 às 17:04
Anônimo disse...

Depois de ficar com agua na boca de tanto pudim , você vem me matar com tanta doçura, coitada da diabetica...
Estou achando incrivel mesmo é tua forma de escrever...Parabens!!

23 de junho de 2010 às 17:05