Sabe o que mais me chama a atenção nas pessoas? A faculdade que todas têm de acumular experiências e aprendizados. Fico espantado com a miscelânea de tarefas que um indivíduo é capaz de cumprir apenas porque aprendeu e reteve informações que, no conjunto, o transformam em um ser completo, auto-suficiente o bastante para se destacar não em uma, duas, cinco áreas, mas em inúmeras atividades a que se propõe.
Um desses luminares da humanidade foi Leonardo da Vinci, alçado à condição de gênio por conta da multiplicidade de talentos, pelo engenho e criatividade voltados para as mais diversas áreas. Da Vinci foi cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, botânico, poeta e músico. Segundo estudo realizado em 1926, o QI (quociente de inteligência) de Da Vinci foi calculado em 180.
O QI, segundo a fórmula adaptada por Lewis Madison Terman em 1916 (e depois disso, há várias derivações), estabelece que se encontra a inteligência de uma pessoa a partir da divisão da idade mental pela idade cronológica multiplicada por 100. Dessa forma, a tabela de Terman classifica assim o QI:
- 141 e acima: genialidade
- 121 - 140: inteligência muito acima da média
- 110 - 120: inteligência acima da média
- 90 - 109: inteligência normal ou média
- 80 - 109: embotamento
- 70 - 79: limítrofe
- 50 - 69: cretino
Não me lembro de ter sido submetido a um teste de QI. O que já denota, por si só, caso o tenha sido, um embotamento da minha parte (entre 80 e 109). Me considero bastante teimoso em algumas questões, das quais não arredo pé, o que sugere que estou ainda na categoria limítrofe (entre 70 e 79) e, para finalizar, fui, como meus colegas de faculdade, chamado de cretino durante dois anos à beira dos fogões, o que me coloca na faixa de 50 a 69. Sem mais comentários.
Volto ao gênio: se a genialidade é medida a partir dos 141 pontos e Da Vinci tinha estimados 180, não é à toa que o italiano, natural da cidade de Vinci (e daí porque Da Vinci), na Toscana, tenha se aventurado nas mais diversas formas de saber.
As áreas cobertas por Da Vinci, descritas acima, não incluem a gastronomia. Mas há um livro - "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci" - editora Record - 209 páginas, que atribuem ao mais famoso pintor renascentista de todos os tempos uma série de apontamentos culinários feitos pelo autor de "Mona Lisa". Esses textos foram encontrados na década de 1980 e indicam que Leonardo da Vinci era vegetariano e chegou, inclusive, a trabalhar em cozinhas de tavernas.
Como nas demais tarefas, também na cozinha Da Vinci se meteu a fazer inúmeras observações e anotações sobre ingredientes e criou ideias para pratos. Credita-se a Da Vinci a invenção, por exemplo, de objetos como os guardanapos e as tampas de panelas. Não há como se provar que os escritos sejam mesmo de Da Vinci, mas os indícios são positivos quanto à autenticidade das anotações gastronômicas do multicultural italiano.
De qualquer forma, o livro é uma peça interessante sobre o ponto de vista do que se comia na Itália ao final do século XV. Transcrevo abaixo uma das receitas de Leonardo da Vinci, a ser consumida com o pensamento sobre um mundo que foi, um dia, contemporâneo, e no qual se vicejava muito para obter ingredientes:
"Sopa Siciliana de Gaudio com Sabor de Fumaça"
"Pegue farinha, água de rosas e gema de ovo e prepare uma massa. Corte-a em tiras compridas que em seguida devem ser enroladas. Deixe que sequem ao sol por dois ou três anos (sic) e, então, jogue-as em caldo gordo junto com queijo ralado, uma pitada de açafrão para dar cor e condimentos doces. Cozinhe-as no fogo sem cobrir a panela com um pano, para que adquira o sabor da fumaça. Gaudio costuma acrescentar uma garrafa de vinho forte à sua porção, mas isso não posso aconselhar, pois costuma fazer com que Gaudio, com frequência, adormeça à mesa."
Não é pitoresco? Claro que, a essa altura, é impossível reproduzir o cenário descrito por Da Vinci: como esperar dois ou três anos, se não podemos esperar duas ou três horas atualmente? E a imprescindível fumaça? Há muito que os fogões a lenha jazem em cinzas, mortas pelos fogo azulado gerado por gases industriais ou, mais radical, pelas frequências emitidas por um forno de micro-ondas.
Mas, se você tiver QI acima do meu, o que é bem provável, conseguirá imaginar a cena na cabeça: uma casa na Itália medieval, numa pequena vila, com o tempo a durar a eternidade e os ingredientes a chegarem dos campos, frescos. Com possibilidades de se experimentar sem pressa, e paciência para esperar por dois ou três anos. E a chaminé de fumaça a espiralar das tavernas, com vinhos grosseiros e gente que, sem o saber, como Gaudio, em plena harmonia de convivência com um gênio daquele tamanho.
Se os apontamentos são ou não de Leonardo da Vinci, não sei dizer. Sei que a imagem é por demais recorrente e bem que poderia ser. Um Da Vinci materializado em meio a panelas e fumaça de uma cozinha encardida, a pensar inconstantemente e criar para todo o sempre.